Homenagem ao lendário herói ancestral dos ingleses que deu título a um dos considerados "Cem Maiores Livros do Mundo" e tido como o mais antigo escrito em "Old English".

quinta-feira, 9 de maio de 2013

BREVE HISTÓRIA DO IMPÉRIO ROMANO - PARTE 5


IV – A REPÚBLICA ROMANA

A República Romana, do latim res publica (coisa pública), é o termo utilizado, por convenção, para definir o Estado romano e suas províncias, desde o fim do Reino de Roma, em 509 AC, até o estabelecimento do Império Romano em 27 A.C. É desta época o surgimento da expressão Senatus Populesque Romanus (Senado e Povo Romano) ou sua sigla, mundialmente conhecida e ostentada em estandartes e bandeiras romanas, SPQR, que acabou por confundir-se com a República Romana. 
Símbolo da República Romana
Durante o período republicano, Roma transformou-se, de simples cidade-estado, em um grande império voltando-se, inicialmente, para a conquista da península Itálica e, mais tarde, para todo o mundo da orla do mar Mediterrâneo.

IV.1 - As Instituições Políticas da República Romana

Os patrícios organizaram o governo republicano de forma a, simultaneamente, monopolizar o poder político, em relação à plebe, e evitar qualquer tentativa absolutista. As instituições básicas da República eram o Senado, as Magistraturas e a Assembleia Centuriata.
O Senado era o órgão principal de governo, composto pelos patrícios mais ilustres. Conduzia a política interna e externa. Escolhia os magistrados e controlava o tesouro público. Os senadores eram vitalícios, mas não hereditários.
Os magistrados, escolhidos pelo Senado, eram referendados pela Assembleia Centuriata. Eram anuais (não podiam repetir a magistratura), de origem patrícia e nunca em número de apenas um para cada cargo.
Entre as magistraturas, o Consulado era a mais importante, com dois cônsules dotados de iguais poderes: dentro de Roma, o poder civil (potestas); fora de Roma, o poder militar (imperium). Assim, neutralizavam-se mutuamente, não havendo perigo de um deles assumir o poder absoluto. Em caso de crise, interna ou externa, excepcionalmente grave, os cônsules eram substituídos por um dictator (ditador). Na República Romana, o dictator (aquele que dita, sugere, inspira, impõe, prescreve) era um magistrado extraordinário (magistratus extraordinarius), com autoridade absoluta para realizar tarefas que iam além do magistrado ordinário (magistratus ordinarius). A ditadura era, portanto, uma magistratura legal e o ditador mantinha poderes absolutos delegados pelo Senado por um prazo máximo de seis meses, improrrogáveis.
Outros magistrados completavam o quadro das magistraturas: Questores, arrecadadores de impostos; Pretores, incumbidos da justiça civil; Edis, que cuidavam das obras públicas; Pontífices, encarregados das cerimônias religiosas oficiais. Estas magistraturas já existiam em 509 AC. Posteriormente, surgiram os Censores, que faziam o recenseamento da população e vigiavam a moral pública, e os Tribunos da Plebe, representantes da plebe junto ao Senado.
Como seria inevitável, o monopólio do poder, pelos patrícios, acarretou problemas para a plebe: constantes mobilizações para a guerra, impostos elevados, endividamento e escravidão por dívidas. Para os patrícios, a guerra trazia espólios em terras e escravos. E a plebe iniciou as suas reivindicações.
Para forçar os patrícios às concessões, os plebeus realizavam greves e ameaçavam abandonar a cidade, com isso obtendo, paulatinamente, várias concessões: os Tribunos da Plebe, a Lei das Doze Tábuas, que transformava as leis orais em escritas; a Lei Canuleia, que autorizava o casamento interestamental (casamento entre classes sociais diversas), até então proibido; mais tarde, os plebeus obtiveram o direito de ocupar as magistraturas inferiores até chegar ao consulado e à ditadura; a Lei Licínia Sextia proibiu a escravidão por dívidas; a Assembleia da Plebe (Comitium Plebis), enfim, escolhia os tribunos plebeus e discutia decisões senatoriais do interesse da plebe, votando o plebiscito.
As vitórias da plebe deram-lhe, praticamente, a igualdade política junto aos patrícios; mas isso ocorria nos meados do III século AC. Nessa época, os romanos já haviam conquistado toda a Itália e estavam iniciando as Guerras Púnicas (de que falaremos em seguida). Tais conquistas estavam mudando de tal maneira, a economia, a sociedade e a vida política de Roma, que o sentido da vitória política da plebe tornou-se praticamente nulo.
Como a expansão territorial provocou profundas transformações na vida econômica, social e política de Roma, costuma-se dividir esse período em duas fases: a primeira, que se estende até o século III AC, identificada com a conquista da península Itálica; e a segunda, que corresponde à formação do poderoso império mediterrâneo.

IV.2 – Conquista da Península Itálica

Durante a monarquia romana, Roma havia imposto o seu domínio no Lácio, conquistando Alba Longa e estendendo o seu território até a foz do rio Tibre.
No início do século V AC, o objetivo fundamental da aristocracia romana era manter sua hegemonia na região do Lácio, o que preocupava as cidades etruscas. Depois da queda da supremacia dos etruscos na península Itálica, em fins do período monárquico e início da República, aproximadamente 30 aldeias e tribos latinas, que ficavam próximas de Roma, formaram contra ela uma confederação, denominada Liga Latina, para fazer frente às suas pretensões expansionistas e assegurar sua mútua defesa.
Em 493 AC, na Batalha do Lago Regilo, Roma celebrou tratado de paz (denominado Foedus Cassianum, tratado de Cassio, em referência a Espurius Cassius, cônsul da República Romana no momento da assinatura do tratado) com a Liga, sem deixar claro se os latinos aceitavam Roma como mais um de seus membros ou se o tratado foi firmado entre ambos em pé de igualdade. Por ele, Roma e a Liga compartilhariam a pilhagem de suas conquistas militares (o que foi, mais tarde, um dos motivos para a Guerra Latina de 341 a 338 AC). O Tratado Também estabelecia que qualquer campanha militar conjunta seria comandada por generais romanos.
No entanto, pouco a pouco, foi-se afirmando a supremacia de Roma até que esta, em 338 AC, ao final da Guerra Latina, rompeu o tratado e dissolveu a Liga Latina. O território de algumas das cidades que a integravam foi incorporado a Roma, que as organizou sob a forma de tribos rurais. Com outras cidades foram firmados tratados (foedera), pelos quais, embora essas cidades mantivessem sua autonomia administrativa, não possuíam o direito de declarar guerra ou fazer paz (ius belli et pacis). Outras cidades mais próximas também foram incorporadas e organizadas em forma de tribos. Assim, além das quatro tribos urbanas criadas por Servius Tullius ao final do período monárquico, surgiram várias outras tribos rurais, perfazendo trinta e uma ao final do século III AC e atingindo o número final de trinta e cinco que não mais se alterou; novas tribos eram incorporadas a uma das 35 tribos já existentes.
De 327 a 290 AC, Roma guerreou três vezes contra os Samnitas[1] pelo domínio da fértil região da Campania. Na terceira guerra, os romanos enfrentaram e venceram uma coligação de samnitas, galos, etruscos e latinos, derrotaram-nos e acabaram com a independência samnita, passando a dominar totalmente o centro da península itálica. A maior parte dos samnitas acabou se aliando aos romanos.
Posteriormente, Roma controlou o norte da Etrúria, cujos domínios compreendiam a Itália central e parte da Itália setentrional. Quando a supremacia romana se estendeu ao Sul da Itália, algumas cidades gregas, como Nápoles, aliaram-se a Roma, enquanto outras, como a rica Tarento, próspera na indústria e comércio, declararam-lhe guerra. 
Efígie do Rei Pirro
Para conquistar essa região, os romanos atacaram Tarento, que pediu ajuda a Pirro, rei do Épiro (região da atual Albânia e parte da Grécia, sudoeste da península balcânica) e Macedônia (parte central da atual Península Balcânica, originalmente grega). Pirro chegou à península Itálica, em 280 AC, com um poderoso exército de 25.000 soldados e 20 elefantes de combate e derrotou os romanos em duas oportunidades, em Heracleia e Ásculo[2]. Mais tarde, os romanos reorganizaram suas forças e liquidaram o exército de Pirro durante a Batalha de Benevento. Em 272 AC, o Sul da Itália, incluindo Tarento, rendeu-se a Roma. Assim, toda a península Itálica, exceto o vale do rio Pó, no extremo norte, passou para o domínio romano.
Ao conquistarem uma região italiana, pelo menos um terço do território ocupado era apropriado pelo Estado, transformado em ager publicus (terras públicas) e depois distribuído aos cidadãos romanos, para várias finalidades: instalação de colônias, distribuição de lotes individuais ou ocupação pela aristocracia, que tinha os meios disponíveis para seu aproveitamento.
Graças ao enorme potencial humano e ao vasto império que dominava, Roma havia se convertido numa enorme potência. Sua influência viu-se fortalecida com a fundação de colônias estratégicas na Itália ligadas por uma importante rede de estradas. Estas colônias eram formadas por cidadãos romanos ou por latinos; os primeiros faziam parte do Estado romano, enquanto os demais eram seus aliados, independentes, porém com privilégios.

IV.3 – Expansão Externa

IV.3.1 Guerras Púnicas

A expansão de Roma fora do território da península Itálica teve início com as Guerras Púnicas, contra Cartago, antiga cidade-Estado fenícia[3], localizada no Norte da África, a leste do lago de Túnis, perto do centro de Túnis, na Tunísia.
Comércio dos fenícios e Cartago
 Foi uma potência na Antiguidade, disputando com Roma o controle do mar Mediterrâneo. Com as Guerras Púnicas, começa a fase verdadeiramente histórica de Roma, cujos acontecimentos possuem registros documentados pelo historiador grego Políbio, que conviveu com os protagonistas romanos do conflito.
Os ricos comerciantes cartagineses possuíam diversas colônias na Sicília, Sardenha, Córsega, Malta (ao sul Sicília) e Gozo (ao noroeste de Malta e parte desta república). Mais a oeste, eles tiveram colônias nas ilhas Baleares (a leste da Espanha), cujos nativos tiveram papel importante nas tropas cartaginesas. Na península Ibérica, colonizaram partes de Granada e Andaluzia (no sul da Espanha). Além do estreito de Gibraltar (saída do mar Mediterrâneo para o Atlântico, entre o sul da Espanha e o norte da África), eles conheciam, e talvez colonizaram as ilhas Canárias (costa africana a oeste do Marrocos) e conheciam a costa da África ocidental até o rio Senegal (que nasce na Guiné, penetra no Mali e deságua no Oceano Atlântico, já no Senegal). 
Império de Cartago pré Guerras Púnicas
Os conflitos entre Roma e Cartago iniciaram-se a partir da expansão romana pelo sul da península Itálica. O motivo da guerra foi o choque entre o expansionismo romano e o cartaginês. Quando Roma anexou os portos do Sul da península e os interesses de Nápoles e Tarento (colônias gregas rivais de Cartago) tornaram-se interesses romanos, a guerra passou a ser inevitável. Era quase certo que Roma, como líder dos gregos ocidentais, iria intervir na luta secular entre sicilianos e cartagineses.
A maior parte da ilha da Sicília era habitada por cartagineses, em luta constante com as colônias gregas ali existentes. Os romanos intervieram e uma de suas legiões, com o apoio de Siracusa, ocupou a cidade de Messina (ambas na Sicília). Os cartagineses declararam guerra a Roma[4].
As forças das duas potências eram bastante equilibradas, pois o poderio de ambas era sustentado por uma comunidade de cidadãos e um poderoso exército, fortalecido por aliados em caso de guerra. Nas três Guerras Púnicas (264 a 146 AC), os romanos venceram os cartagineses. Dominaram a Sicília, a Córsega e a Sardenha, além da península Ibérica, totalmente submetida a Roma após a vitória final, em 133 AC. Parte do Norte da África também foi subjugado pelos romanos, a partir da queda e destruição de Cartago, em 146 AC. Todo o Mediterrâneo ocidental passou ao domínio romano. 
As antigas ruínas de Cartago
Ao mesmo tempo em que se envolvia com as guerras púnicas, Roma voltou sua atenção para o Mediterrâneo oriental, onde o império formado por Alexandre, o Grande, havia se desagregado. Filipe V da Macedônia, aliado a Cartago na Segunda Guerra Púnica, apoiou Antíoco III, rei da Síria, contra Ptolomeu V Epifânio, rei do Egito e protegido de Roma. O cônsul Titus Quinctius Flamininus o derrotou na batalha de Cinocéfalo em 197 AC, tornando a Macedônia um protetorado romano. Mais tarde, seu filho, Perseu, reiniciou a luta contra os romanos, na chamada “revolta dos macedônios” e foi derrotado por Lucius Aemilius Paullus Macedonicus (168 AC), sendo então transformada em província romana.

Segue na PARTE 6

[1] Os samnitas eram um povo indo-europeu que se instalou no centro da península itálica, região montanhosa do Samnio, cerca do ano 800 AC.
[2] Apesar de ter derrotado duas vezes os romanos, Pirro sofreu tão pesadas baixas em seus exércitos, que teria exclamado: "Mais uma vitória como esta e fico sem soldados". Daí se originou a expressão: "Vitória de Pirro", para indicar uma batalha ou questão qualquer em que o vencedor perde quase tanto quanto o vencido.
[3] A Fenícia foi uma antiga civilização cujo epicentro se localizava ao norte da antiga Canaã, ao longo das regiões litorâneas dos atuais Líbano, Síria e norte de Israel. A civilização fenícia foi uma cultura comercial marítima empreendedora, que se espalhou por todo o Mediterrâneo, durante o período entre 1500 e 300 AC. Os fenícios realizavam comércio através da galé, um barco movido a velas e remos.
[4] É desta época a famosa frase latina “Delenda Cartago” ou “Delenda est Cartago” – Cartago deve ser destruída -frequente e persistentemente proferida pelo senador romano Catão, de maneira quase absurda, ao encerramento de seus discursos.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

CHARLES TRENET - MAIS UM HUMILDE RECONHECIMENTO

Da mesma forma que um entreato é preenchido por uma curta melodia que, em geral, quebra o contexto de uma ópera, esta postagem aqui surge para alternar, de um assunto que pode, para alguns, ser um tanto pesado, para algo mais leve e relaxante. Surgiu ela para vir jogar ao lado dos tão pouco reconhecidos compositores de músicas populares, para não entrar no ramo erudito. Vejam se não é verdade.
Alguém já ouviu antes o nome de Charles Trenet? Quem sabe qual foi o autor de “La Mer”? Que canção é essa, “La Mer”? E que tal então "Beyond the Sea"? Nada ainda? Pois é, canta-se, assobia-se uma melodia, em francês, em inglês, por mais de 70 anos sem saber quem foi o gênio responsável por sua criação e sem nada saber desse gênio. É apenas por essa razão que, de vez em quando, ouvindo uma música conhecida, resolvo pesquisar e escrever sobre ela, na tentativa de "dar a Cesar o que é de Cesar", propagando um pouco mais da criatura e do criador. Então vamos lá, com calma, tentar resgatar um pouquinho dessa formidável criatura que foi Charles Trenet e suas criações. Eu recomendo esse artigo aos leitores que apreciam a velha e romântica música e boemia francesas, bem como as coisas simples da vida.
A alma do poeta voou como um anjo de Jean Cocteau, deixando ao mundo uma obra impressionante e variada: perto de 1000 canções, filmes, um punhado de romances, pinturas, uma vida longa, rica, apaixonada e apaixonante, que enriqueceu o século XX, legando à civilização, sobretudo, uma verdadeira filosofia de bondade.
Charles Trenet em pose característica
2013 é o ano em que os franceses comemoram o centenário de nascimento do compatriota Charles Trenet, o inventor da canção moderna, introdutor do suingue e da poesia, o poeta da juventude, da felicidade, da alegria de viver. Entretanto, atrás desta fantasia efervescente e desta máscara de Pierrô iluminado, o homem dissimulava seus abismos íntimos sob o verniz de uma enorme leveza. Assim, mais que qualquer outro, o “Insano Cantante”, como era chamado, também cantava a morte, a solidão, a tristeza, a desolação ou o abandono. “Onde estaria o preço da alegria se nós não a perdêssemos jamais?”, escreveu ele de certa feita.
Louis-Charles-Augustin-Claude Trenet nasceu em Narbonne, em 18 de maio de 1913, filho do tabelião Lucien, um melômano que orientou os filhos no caminho da música, e de Marie Louise. Teve um irmão mais novo, Antoine. A mãe abandonou a família quando Charles tinha 7 anos para seguir o famoso cenarista e diretor de cinema Benno Vigny.
Narbonne, ao sul da França, a cidade que viu nascer Trenet
Narbonne é uma cidade do sudoeste da França na região de Languedoc-Roussillon, a 849 km de Paris, no departamento de Aude, do qual é uma subprefeitura. Está ligada ao Canal du Midi e ao Rio Aude através do Canal de la Robine, que passa pelo centro da cidade. Narbonne foi a primeira colônia romana fora da Itália, estabelecida na Gália em 118 AC.
Em 1922, morando em Perpignan, onde cresceu, Charles é mandado para um internato em Beziers onde muito sofreu psicologicamente. Convalescendo de uma febre tifoide, volta para casa, quando emerge sua sensibilidade artística (modelagem, música e pintura).
Aos 15 anos, vai para Berlin viver com a mãe e o já segundo marido, Benno Vigny, que lhe oferece a possibilidade de frequentar uma escola de arte, onde passa a circular entre as celebridades do cinema alemão.
O jovem Charles Trenet
Em 1930 volta à França e, com a permissão do pai, entra para a "École des Arts Décoratifs". Terminado o curso, trabalha como assistente de direção e assessor nos estúdios cinematográficos franceses, onde conhece Antonin Artaud, Jean Cocteau e Max Jacob, e tem seus primeiros poemas e livros editados.
Benno Vigny volta a Paris com Marie-Louise, para rodar um musical. Para trabalhar na equipe, como compositor das quatro canções que faziam parte do roteiro, Charles se matricula e passa no exame da SACEM (espécie de sindicato francês de músicos, compositores e editores).
Em 1933, conhece um jovem pianista, Johnny Hess, com quem forma o duo "Charles et Johnny". A dupla compõe jingles publicitários para rádio e faz muito sucesso mesclando música francesa tradicional com as tendências modernas. Charles escreve, Johnny compõe. A parceria rende 16 títulos e um contrato com a gravadora Disques Pathé. O duo acaba com a chegada do serviço militar obrigatório para os dois artistas mas, antes de partir, deixam para Jean Sablon gravar uma canção feita em cinco minutos - letra rabiscada num guardanapo de papel -, a obra-prima “Vous qui passez sans me voir”, de 1937, aqui interpretada pelo autor. Para acompanhar a interpretação, com a letra da música e a sua tradução, clicar neste link.
Maurice Chevalier, impressionado com a popularidade de Trenet, decide colocar em seu repertório uma canção que achava "meio sem pé nem cabeça", "Y'a d'la Joie", sucesso estrondoso e imediato nos vaudevilles de Paris.
Em seguida Trenet passa a interpretar suas próprias canções e, para isso, cria um visual original usando sua experiência de artista plástico: aba do chapéu arredondada como uma auréola (para disfarçar o rosto redondo), terno vermelho e sorriso constante, iluminado pelos olho azuis: um showman de primeira qualidade. Ironicamente, entretanto, entre as “palhaçadas” do ato, ele realmente sofria de profundo pânico do palco, que nunca venceu totalmente, mas aprendeu a mascarar mais tarde. Em 1938 compõe e interpreta “Menilmontant”, uma linda canção que evoca um famoso bairro operário de Paris onde, entre outros boêmios, nasceu Edith Piaf e estreou Maurice Chevalier, um de seus primeiros grandes sucessos. A letra original e a tradução podem ser apreciadas neste clicando aqui.
Alistado na Força Aérea Francesa, raspou a cabeça e ostentava um monóculo, atributos que lhe davam uma aparência bizarra e que lhe granjearam o apelido de “O Insano Cantante”.
Durante a segunda guerra mundial, mesmo sendo um homem marcado pelas suas preferências sexuais e pela amizade com artistas judeus, Charles Trenet resolve continuar na França, onde suas canções, verdadeiros hinos à liberdade, são censuradas pelo governo de Vichy. Durante a ocupação nazista, "Douce France" torna-se o hino da Resistência (acompanhe a interpretação de Trenet clicando na letra de Douce France). A imprensa colaboracionista sugere então que o sobrenome Trenet seria um anagrama de Netter e Charles teve que provar que em quatro gerações de sua família não havia nenhum judeu.
Em 1943, Trenet compõe sua obra prima "La Mer", que ficou três anos nas paradas. Trenet escreveu a letra dessa canção em um trem, enquanto viajava pela costa mediterrânea francesa voltando de Paris para Narbonne. Supostamente, a composição demorou 10 minutos para ser finalizada, em papel higiênico fornecido pela SNCF (Société Nationale des Chemins de fer Français; Rede Ferroviária Francesa). Leo Chauliac o ajudou na composição da melodia, que foi originalmente publicado por Raoul Breton. A canção foi primeiramente oferecida à cantora Suzy Solidor, que a rejeitou dizendo que “canções sobre o mar me aparecem umas dez por dia”. Em 1946, Raoul Breton convence Trenet a cantar ele mesmo a composição e, claro, La mer foi sucesso imediato na França, entrando, de uma vez por todas, para o hall de clássicos da chanson française. Para ouvir essa maravilhosa melodia, interpretada em cena para o público, por seu autor Charles Trenet, acompanhado pela orquestra de Raymond Lefèvre, basta clicar em "La Mer" ... e sonhar. A letra original e sua tradução podem ser acompanhadas pelo link letra de La Mer. A canção possui mais de 400 versões nas mais diversas línguas. Uma das principais adaptações é a de Jack Lawrence, intitulada, na língua inglesa, "Beyond the Sea", interpretada notadamente por Bobby Darin (e também por Bing Crosby), em 1960, quando ficou internacionalmente conhecida, já tendo sido utilizada como trilha sonora de diversos filmes. Entre tantos cantores que gravaram essa inesquecível melodia, gostaria de mencionar uma francesa, Mireille Mathieu e um americano, Rod Stewart, embora a gravação original, com o compositor, seja imbatível. É do mesmo ano de 1943, sua linda composição "Que Reste-t il de nos amours", também vertida para o inglês com o título "I Wish You Love", gravada por Nat King Cole, Rod Stewart, The Bachelors, entre outros, e tendo servido de trilha sonora para, pelo menos, dois filmes, um dos quais “Terapia do Amor”. Os leitores podem acompanhar a melodia, interpretada por seu autor, clicando no link da letra correspondente.
Cantor, compositor, letrista de cerca de mil canções, artista plástico, poeta e escritor, Charles Trenet revolucionou a música francesa nos anos 40 com versos inspirados e estética semelhante aos poemas de Paul Éluard e Jacques Prévert. Por sua vez, influenciou compositores e intérpretes que lhe sucederam, como Charles Aznavour, Jacques Brel e Georges Brassens.
Terminada a guerra, Charles Trenet parte para conquistar os Estados Unidos, onde se torna amigo de George Gershwin, Duke Ellington, Louis Armstrong, Chaplin e da dupla "O Gordo e o Magro". E em seguida veio o resto do mundo. Esteve várias vezes no Brasil entre 1947 e 1955, onde sua popularidade era imensa. Em 1952 compôs a maravilhosa valsa “L’âme des poètes”, uma melodia triste, de reminiscências, onde demonstra todo o seu talento de poeta. Acompanhe a interpretação de Trenet com a letra original e sua tradução. Seu sucesso durou até os anos 60, quando a febre do rockn'roll alcançou a França dando lugar a Johnny Holliday, Richard Anthony e Françoise Hardy.
Charles Trenet na década de 50
Em 1963, foi vítima de uma armação, encenada pelo ex-cozinheiro-motorista-secretário que o acusava de recrutar jovens efebos para partcipar de festinhas íntimas. Ficou preso para averiguações por um mês e, depois do julgamento, foi condenado a um ano de prisão e multa de dez mil francos, sendo beneficiado com sursis. Durante a estadia na prisão escreveu uma prece para os prisioneiros e uma canção para o carcereiro.
A longevidade de Trenet foi uma surpresa até mesmo para ele que, pretendendo aposentar-se na década de 1970, fazia um tour de despedida pela França e concordou com o pedido de um concerto de despedida no Canadá; teve uma recepção tão encorajadora que preferiu continuar se apresentando.
Em 1977, a morte da mãe, com quem mantinha forte ligação, o deixou recluso por dez anos. Esta semi-aposentadoria aconteceu numa mansão do sul da França, onde escreveu muitos romances e um livro de memórias: "Mes jeunes années" (Meus anos de juventude).
Trenet na década de 1970
Em 1983, lançado candidato à Academia Francesa, sofreu duplo preconceito: foi impedido por não compor música "inteligente" e por ser homossexual declarado. Mas, como se servisse de compensação, recebeu muitas homenagens, como a Légion d'Honneur e o Grand Prix National des Arts et Lettres.
Retomando à carreira em 1987, lançou, dois anos depois, seu último disco sempre com a mesma temática - infância, alegria e amor - e se engajou na campanha de François Mitterrand e Jack Lang na eleição presidencial francesa de 1988.
Encontrava-se ainda trabalhando na década de 1990, um período em que pelo menos quatro CDs de seus trabalhos foram liberados, incluindo uma coleção “o melhor de” produzida pelo inglês Tony Watts. Aos oitenta anos de idade, ainda apresentava uma entusiástica aparência, um amplo sorriso coberto por escasso cabelo vermelho que o fazia parecer exatamente como o artista de teatro de variedades antigo que ele era.
Aos 85 anos, em julho de 1998, canta no festival de Nyon, na Suíça, para uma plateia de 20 mil pessoas, que faz coro (por conhecer de cor) ao seu repertório legendário. Depois, na Sala Pleyel, em Paris, o público emocionado também aplaude com emoção o ídolo que se movimenta com muita dificuldade, mas canta com o mesmo entusiasmo dos vinte anos. "Quem veio ao meu show está dispensado de ir a meu enterro", teria dito Charles Trenet, pouco antes de morrer, nesta sua última apresentação.
Em abril de 2000, o cantor sofre um acidente cardiovascular, se restabelece e comparece à inauguração do pequeno museu instalado na casa natal, em Narbonne, situada na Avenida Charles Trenet 13, onde objetos, partituras e fotos de seu percurso artístico levam o visitante a conhecer sua vida familiar, evocando em particular a figura da mãe, Marie Louise, que ali viveu muito tempo.
Charles Trenet desejava morrer como um poeta: "Eu quero ir voando", dizia, ao falar da morte. E assim foi: voou em paz, durante o sono, na madrugada do domingo 19 de fevereiro de 2001, na cidade de Créteil, França. Ao saber da sua morte, o presidente da França, Jacques Chirac, declarou: "Trenet era símbolo de uma França sorridente e criativa, figura muito próxima de cada um de nós".