Homenagem ao lendário herói ancestral dos ingleses que deu título a um dos considerados "Cem Maiores Livros do Mundo" e tido como o mais antigo escrito em "Old English".

domingo, 26 de março de 2017

UMA PEQUENA HISTÓRIA DOS ÁRABES MUÇULMANOS (Parte 2)

III.2 – CONQUISTA DO EGITO (639 – 642)
Impérios Bizantino, Sassânida e Árabe (Califado Rashidun),
Consolidada a conquista da Península Arábica.


Apenas como lembrança, ao início da conquista muçulmana do Egito, este era também parte do Império Romano do Oriente/Bizantino, que tinha a sua capital em Constantinopla. Apenas uma década antes, o Egito havia sido tomado pelo Império Persa, sob Khosrau II (616-629 DC); contudo, o imperador Heráclio recapturou o Egito após uma série de campanhas contra os persas sassânidas, antes de perde-lo novamente para o exército muçulmano Rashidun dez anos após. Como vimos, antes de perder o Egito para os muçulmanos, os bizantinos já haviam perdido também o Levante – com o seu aliado árabe, o reino Gassânida[1] – ficando assim perigosamente expostos e vulneráveis.
A província bizantina do Egito possuía grande importância estratégica por sua produção de grãos, parques navais e como base para futuras conquistas na África. O general Amr.ibn.al-‘As iniciou a conquista da província por sua própria iniciativa em 639. Ao final de dezembro ou início de janeiro de 640, os muçulmanos chegaram a Pelúsio, considerado o portão mais oriental do Egito; em fevereiro de 640 o forte e a cidade foram assaltados e capturados. As perdas do exército muçulmano foram substituídas pelos beduínos do Sinai que a ele se haviam juntado voluntariamente. Após a queda de Pelúsio os muçulmanos marcharam para Bilbeis, primeiro lugar do Egito em que os bizantinos ofereceram resistência, mas que acabou caindo após um mês, em março de 640; com a queda de Bilbeis, os árabes se encontravam apenas a um dia de viagem da cabeça do delta do Nilo.
Mapa da Invasão do Egito pelos muçulmanos
Após a queda de Bilbeis os árabes avançaram para Babilônia, próximo da moderna Cairo, cidade fortificada que os romanos haviam preparado para o cerco. Este começou em maio de 640 e a luta permaneceu indecisa por dois meses, quando Amr solicitou reforços ao califa Omar. Tais reforços não foram suficientes e novas adições significativas chegaram a Babilônia em setembro de 640. Entrementes, em julho do mesmo ano, os árabes se voltaram para Heliópolis, a 10 km desta cidade, e conseguiram ocupá-la rapidamente, retornando para Babilônia.
Ao longo do seu retorno cidades menores foram tomadas e após muitas escaramuças, Babilônia tombou em 21 de dezembro de 640, com o general bizantino Theodorus e seu exército fugindo para a ilha de Rauda
Em 22 de dezembro, o patriarca Cyrus, da Alexandria, fez um acordo com os muçulmanos, por onde reconhecia a soberania islâmica sobre todo o Egito, incluindo o Thebaid (região do antigo Egito que compreendia os treze distritos mais ao sul do Egito Superior) e concordava em pagar Jizya[2] aos conquistadores. Tal tratado deveria ser aprovado pelo imperador Heráclio e pelo califa Omar, que foram informados, respectivamente, por Cyrus e por Amr. Heráclio repudiou o tratado, removeu Cyrus do seu posto de vice-rei (embora tenha permanecido como líder dos cristãos no Egito) e deu ordens ao comandante das forças bizantinas para que expulsassem os muçulmanos do Egito. Omar, por seu lado, ordenou a Amr que atacasse e expulsasse da Alexandria os bizantinos, antes que pudessem reunir mais forças. Com a promessa de que os muçulmanos manteriam o tratado com os cristãos, estes passaram a ajudar os muçulmanos em seu esforço de guerra, abastecimento, construção de estradas e pontes e apoio moral. 
Omar, o segundo Califa
Em fevereiro de 641 Amr marchou para a Alexandria com seu exército, enfrentando pequenas forças bizantinas por todo o caminho, propositalmente deixadas. Tais escaramuças prosseguiram por 10 dias, sem decisão, até que os muçulmanos lançaram um vigoroso assalto, obrigando os bizantinos a retirar-se para Alexandria. Com isso o caminho para a cidade estava limpo e as forças muçulmanas alcançaram os arredores de Alexandria em março de 641, quando iniciou o sítio.
Heráclio havia reunido um grande exército em Constantinopla e pretendia marchar como líder, pessoalmente para Alexandria, mas morreu nessa ocasião. As tropas se dispersaram e nenhuma ajuda seguiu para Alexandria que, embora pesadamente fortificada e com provisões, não conseguiu resistir ao cerco por mais de seis meses, sendo capturada pelos muçulmanos em setembro de 641.
Com a queda de Alexandria, os muçulmanos tornaram-se senhores do Egito, de que ela era a capital. Os muçulmanos eram vivamente impressionados e atraídos por Alexandria, que chamavam “a rainha das cidades”; por isso, Amr escreveu a Omar pedindo licença para torna-la a capital islâmica do Egito. Tal proposta foi rejeitada por Omar que a considerava, como cidade marítima, perigosa quanto a novos ataques navais bizantinos, sugerindo que a capital fosse estabelecida num local central, sem massa de água importante entre Arábia e Egito. O local escolhido por Amr para ser a nova capital do Egito foi o mesmo onde ele havia acampado ao tempo da batalha da Babilônia, a leste da cidade, e foi denominado Fustat (tenda em árabe). A primeira estrutura da cidade construída foi a mesquita que mais tarde ficou famosa como a “Mesquita de Amr ibn al-As”. Com o tempo, Fustat estendeu-se, incluindo a Babilônia e cresceu para tornar-se uma cidade agitada e o centro comercial do Egito.
Para consolidar seu domínio no Egito, Omar impôs a jizya aos egípcios, que antes só fora paga por bizantinos e gregos. Com a autorização de Omar, o general Amr abriu o canal “Nahar Amir ul Mu’minee” (Canal do Comandante do Fiel) que ligou o Nilo ao mar Vermelho e que faria florescer o comércio com a Arábia e o Iraque através de novo e fácil caminho.
A perda permanente do Egito significou a perda de uma imensa quantidade de alimentos e riquezas dos bizantinos. No ano de 645 uma tentativa foi feita para recuperar Alexandria para o Império Bizantino, mas ela foi retomada por Amr em 646. No mesmo ano, Mu‘awiya, o governador árabe da Síria e futuro fundador da dinastia Omíada, ordenou a construção de uma frota naval que foi posta a navegar três anos após, num ataque de pilhagem a Chipre[3]. Em 650 um segundo ataque seguiu-se que foi encerrado com um tratado pelo qual os cipriotas entregaram boa parte de suas riquezas e escravos. Em 688 a ilha foi transformada numa dominação conjunta do califado e do império bizantino que durou por quase 300 anos.
Em 654 uma frota de invasão enviada ao Egito, por Constante II, foi repelida. A partir daí nenhum novo sério esforço foi feito pelos bizantinos para recuperação do Egito. Os árabes permaneceram no controle do Egito, desde essa época até o ano de 1250, quando caiu sob o domínio dos Mamelucos[4], dos quais ainda voltaremos a falar.

III.3 – CONQUISTA DO NORTE DA ÁFRICA (642-643)

Após uma tentativa mal sucedida na Núbia, ao sul do Egito, o general Amr decidiu realizar campanhas para o oeste, afim se garantir as fronteiras a oeste do Egito e limpar a região de Cirenaica, Tripolitânia (região administrativa do reino da Líbia, ao norte) e Fezã (região administrativa do reino da Líbia ao sul) da influência bizantina. Em setembro de 642, Amr conduziu suas tropas para oeste e após um mês de marcha atingiu as cidades de Pentápolis (outro nome da Cirenaica). De Barce (uma das cinco cidades de Pentápolis), Uqbah bin Nafi liderou uma coluna em campanha contra Fezã, diretamente contra sua capital, Zaweela; nenhuma resistência foi oferecida e todo o distrito de Fezã submeteu-se aos muçulmanos. Uqbah retornou a Barce e logo em seguido marchou para oeste, chegando em Trípoli (na costa norte da Tripolitânia) na primavera de 643 e iniciando o cerco da cidade que caiu em um mês. De Trípoli, Amr enviou um destacamento a Sabratha (cidade a cerca de 64 km a oeste de Trípoli), que ofereceu fraca resistência, rendendo-se e concordando com o pagamento da Jizya. De Trípoli, Amr reportou suas vitórias ao califa Omar, comunicando que o caminho para o oeste estava limpo.
Omar, cujos exércitos se encontravam empenhados em maciça campanha para conquista do Império Sassânida, não quis se comprometer mais ao longo do norte da África, enquanto o domínio do Egito não se encontrava totalmente seguro. Assim, ordenou que Amr primeiro consolidasse a posição muçulmana no Egito, enfatizando que não houvesse campanhas adicionais. Amr obedeceu, abandonando Trípoli e Barce e retornando a Fustat, ao final de 643.
No ano de 647, os árabes retornaram ao norte da África, para a conquista do que se chamava de Exarcado da África, ou de Cartago, sua capital, uma divisão administrativa do império Bizantino, que abarcava todas as suas possessões no Mediterrâneo ocidental, governada por um exarca (vice-rei). Essa divisão havia sido criada pelo Imperador Mauricio ao final dos anos 580, sobrevivendo até a conquista muçulmana do Maghreb ao final do século VII.
Localização da Anatólia na Eurásia (retângulo vermelho)
Desta feita o exército tomou a Tripolitânia após a batalha de Sufetula (a 240 km de Cartago), em 647. As forças árabes retornaram ao Egito em 648 em troca por tributo. Todas as conquistas árabes adicionais foram logo interrompidas por força de uma guerra civil entre facções árabes que resultou na morte do califa Uthman, em 656, substituído por Ali Ibn Abi Talib, que por sua vez foi assassinado em 661. A dinastia Omíada (de que falaremos ainda) estabeleceu-se em Damasco e o califa Muawiya I começou a consolidação do império desde o mar Aral até a fronteira oeste do Egito. Colocou um governador local no Egito em al-Fustat, criando um assento subordinado de poder que continuaria pelos dois próximos séculos. Ele então continuou a invasão dos estados vizinhos não muçulmanos, atacando a Sicília e a Anatólia, em 663. A figura mostra a localização da Turquia, na Ásia Menor, dentro do retângulo, com referência ao continente europeu. A Anatólia corresponde, grosseiramente, à parte asiática da Turquia, com exceção das partes orientais, historicamente conhecidas como “Altas Terras da Armênia”.

III.4 – CONQUISTA DA MESOPOTÂMIA E PÉRSIA (633-651)

A conquista da Pérsia (atual Irã) pelos muçulmanos conduziu ao fim do Império Sassânida, em 651 e ao declínio posterior da religião Zoroastriana na Pérsia. É importante lembrar que, a esse tempo, o império Sassânida era formado por Iraque e Irã (Mesopotâmia e Pérsia), além de outros territórios menores.
A ascensão dos muçulmanos havia coincidido com um significativo enfraquecimento político, social, econômico e militar da Pérsia, conforme já mencionamos, pelas exaustivas batalhas travadas pelo Império Sassânida contra o Império Bizantino.
Logo após as guerras Ridda, que consolidaram o califado de Abu Bakr em 633, um chefe tribal do nordeste da Arábia, Al-Muthanna ibn Haritha, forte o bastante para atacar o Império Persa ao nordeste e o Império Bizantino ao noroeste, atacou pela primeira vez cidades persas na Mesopotâmia, por determinação do califa. Ele tinha três objetivos com essas conquistas: (1) ao longo das fronteiras árabes com esses dois impérios haviam numerosas tribos árabes nômades que atuavam como um estado amortecedor entre romanos e persas; Abu Bakr cria que essas tribos aceitariam o Islamismo ajudando em sua difusão; (2) as populações persas e romanas sofriam com impostos muito altos e Abu Bakr acreditava que elas podiam ser persuadidas a ajudar os muçulmanos com a promessa de liberá-los dos tributos excessivos; (3) dois impérios gigantescos cercavam a Arábia, tornando inseguras as fronteiras do Estado Islâmico (rever Figura 007); Abu Bakr esperava que atacando Iraque e Síria, pudesse remover o perigo de suas fronteiras. Os sucessos iniciais e posteriores de Al-Muthanna ibn Haritha fizeram-no pensar sobre a expansão do Império Rashidun. Khalid ibn al-Walid, seu melhor general foi posto no comando e, com 10.000 homens e mais 8.000 dos chefes tribais das fronteiras, penetrou no Império Persa na terceira semana de março de 633.
Mapa detalhando a rota de Khalid ibn al-Walid, as batalhas
travadas e cidades conquistadas na conquista da Mesopotâmia
Até a última semana de julho, a maior parte do que é hoje o Iraque estava sob controle islâmico. Três batalhas adicionais em Zumail, Sanni e Muzieh, em novembro de 633, encerraram o controle persa na Mesopotâmia, deixando sua capital, Ctesiphon desguarnecida e vulnerável ao ataque muçulmano. Antes de avançar à capital, em dezembro de 633, Khalid venceu sua última batalha na conquista da Mesopotâmia, em Firaz, contra um exército combinado de persas, bizantinos e árabes cristãos. Nesse momento ele recebeu ordens do califa Abu Bakr para assumir o comando dos exércitos muçulmanos na luta contra a Síria romana, conforme já vimos acima.
Com a saída de Khalid, os persas decidiram tomar de volta seus territórios perdidos. Seu novo imperador Yazdgerd III buscou aliança com o imperador bizantino Heráclio através do casamento com sua filha e prepararam juntos ataques coordenados, no Levante e na Mesopotâmia para acabar com seu inimigo comum, o novo califa, Omar. Esses ataques não tiveram sucesso porque Yazdgerd III não conseguiu reunir seu exército a tempo e já sabemos o resultado da campanha dos árabes contra os bizantinos.
O exército sassânida, entretanto, era ainda uma força poderosa que se encontrou com as forças islâmicas em Qadisiyyah, em 636, início da segunda invasão. O general muçulmano, Saad ibn Abi Waqqas, dentro de três meses derrotou o exército persa na batalha de Qadisiyyah, efetivamente encerrando o domínio sassânida a oeste da Pérsia. Com o grosso das forças persas derrotadas, Saad conquistou Babilônia, Koosie, Bahrasher e Madein. Ctesiphon, a capital imperial do império sassânida, caiu em março de 637, após um cerco de três meses. Com a queda de mais algumas cidades que incluíram Jalula e a região de Tikrit-Mosul, o domínio muçulmano na Mesopotâmia foi estabelecido.
Em fevereiro de 638 a força dos combates amainou na frente persa. O Suwad (fértil área entre os vales do Tigre e do Eufrates), o Vale do Tigre e o Vale do Eufrates estavam agora sob o total controle dos muçulmanos. Os Persas se haviam retirado para a própria Pérsia, a leste das Montanhas Zagros[5], barreira natural entre o califado Rashidun e o Império Sassânida, que não cessou de realizar contra-ataques até janeiro de 641 quando os muçulmanos conquistaram Susa e Junde Sabur (província do Khuzistan), dois locais de grande importância militar e Omar pretendeu a paz. 
Isfahan, capital da província de Isfahan, Pérsia, atual Irã
Numa última tentativa de expulsar os muçulmanos, os persas conseguiram reunir 100.000 homens em Nahavand. Informado do fato, Omar enviou todas as suas forças para aquela cidade, onde se travou a batalha decisiva para os dois impérios. A Batalha de Nahavand, em 642, foi vencida pelos muçulmanos e com ela selado o destino do império Sassânida, ocorrido em 651.
Após a devastadora derrota em Nahavand, o último imperador sassânida, Yazdegerd III, fugiu por diferentes partes da Pérsia para levantar um novo exército, sem muito sucesso, com Omar tentando capturá-lo quando havia ganho vantagem psicológica sobre os persas. Um plano de ação foi formulado e os preparativos completados em janeiro de 642. Poucos meses depois, um dos principais objetivos de Omar, a província de Isfahan (capital Isfahan), no centro do império e importante ponto de comunicação entre os exércitos persas, foi tomada. O ataque à segunda das grandes províncias pretendidas por Omar, Fars, com capital em Persépolis, havia iniciado em 639, mas só foi vencida em 651; mesmo assim os habitantes da Província ainda se rebelariam, mais tarde, várias vezes contra os árabes.
Província de Fars, lar do povo persa
 A conquista do Azerbaijão Iraniano, terceiro grande objetivo dos árabes, encerrou em 651 com um pacto pelo qual a província se rendia ao Califado sob os termos usuais do pagamento da Jizya. A Armênia
[6] bizantina já havia sido conquistada entre 638 e 639. Por essa época, com exceção do Khorasan (região histórica situada no nordeste da Pérsia) e da Armênia persa, situada ao norte do Azerbaijão, Omar possuía o controle de todo o Império Persa. Ao final do ano 643, Omar enviou expedições contra essas duas regiões; o avanço sobre a Armênia foi encerrado em novembro de 644 com a morte do Califa Omar, quando praticamente todo o sul do Cáucaso havia sido capturado. O Khorasan era a segunda maior província do império Sassânida, estendendo-se do que é hoje o nordeste do Irã, noroeste do Afeganistão e sul do Turquemenistão, com capital em Balkh (norte do Afeganistão), onde encontrava-se Yazdegerd III com as forças que ainda conseguira reunir. Em 651 seu exército foi derrotado na batalha do Rio Oxus, sua capital ocupada pelos árabes e com essa ocupação a guerra acabou. O imperador Yazdegerd fugiu através do Oxus para a Transoxiana[7] e teve uma pequena chance de fugir para a China, mas foi assassinado por um moleiro local por sua bolsa. Os muçulmanos haviam alcançado as últimas fronteiras persas a oeste; além dessas, restavam apenas as terras dos turcos e ainda além, a China. O velho e poderoso império dos sassânidas havia deixado de existir. 
Azerbaijão iraniano, noroeste da Pérsia
(atual Irã)
Após sua vitória sobre o exército imperial, os invasores, desde 644 sob o califa Uthman ibn Affan (já pertencente à dinastia Omíada, embora o regime Omíada tenha sido fundado por Muawiya ibn Abi Sufyan, governador da Síria, após o fim da primeira guerra civil muçulmana, em 661), ainda tiveram que lutar com diversos principados da Pérsia, militarmente fracos, mas geograficamente inacessíveis, o que exigiu décadas para dar o total controle ao califado. A conversão ao islamismo foi gradual, parcialmente como resultado dessa violenta resistência; contudo, as escrituras zoroastrianas foram queimadas e muitos sacerdotes executados. Contudo, os persas começaram a se reafirmar mantendo a língua e a cultura persa. Não obstante, o islamismo foi adotado por muitos, por ameaça e extorsão, por razões políticas e econômicas, ou simplesmente por persuasão, tornando-se a religião dominante na idade média.
Os omíadas prosseguiram com as conquistas muçulmanas, incorporando o Cáucaso, Transoxiana, Sindh e a Península Ibérica ao mundo islâmico, como veremos a seguir. 

[1] Os Gassânidas eram um grupo de árabes que emigraram no início do século III do sul da Península Arábica para a região do Levante onde alguns se mesclaram com as comunidades cristãs de fala grega, convertendo-se ao cristianismo nos primeiros séculos DC, enquanto outros já eram cristãos antes de emigrarem para o norte escapando da perseguição religiosa. Poucos gassânidas tornaram-se muçulmanos acompanhando a conquista islâmica, mas a maioria permaneceu cristã unindo-se às comunidades Melkita e Siríaca, dentro do que é hoje a Jordânia, Palestina, Síria e Líbano.
[2] Jizya é uma taxa anual per capita historicamente imposta pelos estados islâmicos sobre certos súditos não islâmicos (dhimmis) residindo permanentemente em terras muçulmanas, sob lei islâmica. Os juristas muçulmanos exigiam o pagamento da Jizya por parte de adultos, libertos e homens sãos da comunidade dhimma, deixando isentas as mulheres, crianças, idosos, deficientes, doentes, insanos, eremitas, escravos e moradores temporários. Os dhimmis que se uniam ao serviço militar e aqueles que não podiam pagar eram isentos do pagamento.
[3] O Chipre é a terceira maior e a terceira mais populosa ilha do mar Mediterrâneo oriental. Está localizada ao sul da Turquia, oeste da Síria e do Líbano, noroeste de Israel e Palestina, norte do Egito e sudeste da Grécia.
[4] Mameluco é a designação árabe para escravo, mais usado para se referir a soldados escravos de muçulmanos e a governantes muçulmanos de origem escrava. O mais duradouro reino mameluco foi a casta militar nobre do Egito da Idade Média, que surgiu de soldados escravos em sua maioria de povos turcos, mas também cristãos do Egito, circassianos e georgianos. Com o tempo os mamelucos tornaram-se uma poderosa casta militar em várias sociedades então controladas por muçulmanos. Particularmente no Egito, mas também no Levante, Mesopotâmia e Índia, os mamelucos sustentaram grande poder político e militar.
[5] As montanhas Zagros formam a maior cadeia montanhosa no Irã, Iraque e sudeste da Turquia, com um comprimento de 1.500 km. Grosseiramente, ela corre pela fronteira entre Irã e Iraque, desde o Golfo Pérsico, infletindo para o oeste ao estremo norte do Iraque e correndo entre Iraque, Síria e Turquia até o mar Mediterrâneo.
[6] O Reino da Armênia, que teve o seu auge entre 95 e 66 AC, durante as guerras Bizantino-Sassânidas foi repartida em Armênia Bizantina (em 387 DC) e Armênia Persa (em 428 DC).
[7] Transoxiana é a área além do rio Oxus, antigo nome da porção da Ásia Central correspondente aos atuais Uzbequistão, Tajiquistão, sul do Quirguistão e sudoeste do Cazaquistão).

Prossegue com a Parte 3

sábado, 18 de março de 2017

UMA PEQUENA HISTÓRIA DOS ÁRABES MUÇULMANOS (Parte 1)

I - INTRODUÇÃO

Ao longo da minha vida, muitas discussões ouvi e tive sobre as Cruzadas, mas pouco ouvi sobre a sua razão de ser, sobre as suas reais origens. Até aqui, as Cruzadas foram formadas para combater os povos de origem árabe (e de religião muçulmana), que não eram originários da Europa, como todos sabemos. O que significa que os povos islâmicos partiram de suas terras de origem para, antes, conquistar as terras da Europa, África e Ásia. Só muitos anos após essas conquistas, as Cruzadas começaram a ser formadas para combater um povo estranho às suas terras. E muito pouco se fala dessas primeiras conquistas dos povos islâmicos, como se eles tivessem sido inicialmente atacados em suas terras. A qualquer historiador que pretenda mostrar-se imparcial – na minha visão, o termo “historiador” implica imparcialidade, mesmo que característica muito difícil, ou seja, historiador propositalmente parcial não mereceria jamais tal título – é tentativa infrutífera expor as Cruzadas sem claramente colocar a expansão árabe que as antecedeu. Como isso sempre me pareceu uma injustiça, não da história, mas do conhecimento divulgado através de discussões passadas e atuais, resolvi pesquisar um pouco sobre essa parte da história, buscando esclarecimentos pessoais que pudessem me ajudar nos esclarecimentos a terceiros.
Inicialmente, de propósito, penso importante uma pequena introdução sobre os “Mouros”, para bem explicitar a diferença entre eles e os povos árabes, pois um e outro aparecem frequentemente como se sinônimos fossem. A palavra “Mouros” refere-se aos habitantes muçulmanos do Maghreb (África do Norte), Península Ibérica, Sicília e Malta, durante a Idade Média, que foram, inicialmente, povos Berberes[1] e Árabes da África do Norte. Os mouros não são um povo distinto ou auto definido e a corrente atual de estudiosos observou, em 1911, que o termo “mouros” não possui valor etnológico real. Medievais e primitivos europeus modernos aplicaram o termo a árabes, norte-africanos berberes e muçulmanos europeus. O termo também tem sido usado na Europa com um sentido mais amplo para se referir aos muçulmanos em geral, especialmente aos descendentes de árabe ou berber, vivendo na Espanha ou Norte da África. 
Em verde, os países componentes da
União Árabe Maghreb
O Maghreb (antigamente conhecido como “Costa Bárbara”) ou Maghreb Maior é usualmente definido como a maior parte da região do oeste da África do Norte ou África Noroeste, a oeste do Egito. A definição tradicional que incluía as Montanhas Atlas[2] e as planícies costeiras do Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia, foi posteriormente aumentada, especialmente após a formação, em 1989, da União Árabe Maghreb, com a inclusão da Mauritânia e o disputado território do Saara Ocidental (controlado principalmente pelo Marrocos). Durante a era do Al-Andalus (de que vamos muito falar), na Espanha (711-1492), os habitantes do Maghreb, os Maghrebis, foram conhecidos como Mouros; as áreas muçulmanas da Espanha, naquela época, eram usualmente incluídas nas definições contemporâneas do Maghreb e, em consequência, o termo “Mouros” era usado para descrever os habitantes muçulmanos da Espanha, nas fontes ocidentais. O termo “maghrib” em árabe significa “oeste” e, no estrito senso, a forma definida “al-maghrib” denota o país do Marrocos, em particular. Ele identificou os territórios mais ao oeste que sucumbiram às conquistas islâmicas do século VII. 
Península Arábica, em verde, o lar
original dos árabes
Os árabes, por sua vez, são um grupo étnico que habita, hoje, o mundo Árabe (Estados Árabes: Ásia Ocidental, Norte da África, o Corno da África – Djibouti, Eritreia, Etiópia e Somália – e as ilhas ocidentais do Oceano Índico). Os árabes foram mencionados, pela primeira vez, em meados do século IX AC, como um povo tribal vivendo na Península Arábica Central, sob a vassalagem dos Impérios Neo-Assírio (911-612 AC), de seu sucessor Neobabilônico (626-539 AC), do Aquemênida ou Primeiro Império Persa (539-332 AC), do Selêucida (312-63 AC) e do Parta (247 AC-224 DC). Tribos árabes começaram a aparecer ao sul do deserto sírio, a partir do século III DC, durante os estágios médio e final dos impérios Romano e Sassânida. A Tradição sustenta que os árabes descendem de Ismael, um dos filhos de Abrahão (com sua escrava Agar). Posteriormente, mas antes da expansão do Império Árabe, eles referiam-se a qualquer dos povos semíticos[3] nômades da Península Arábica, norte e centro, e do Deserto Sírio, mas o deserto arábico é o berço do Árabe. O “Mundo Árabe” surgiu quando do espalhamento, dos árabes por várias regiões do mundo durante as conquistas árabes dos séculos VII e VIII. Criaram os califados Rashidun (632-661), Omíada (661-750) e Abássida (750-1258), cujas fronteiras alcançaram a Espanha e o sul da França, no oeste, a China no leste, Anatólia, ao norte, e o Sudão, ao sul, além de todo o norte da África, constituindo um dos maiores impérios territoriais da história. Os laços que unem os árabes são étnicos, linguísticos, culturais, históricos, geográficos e políticos, possuindo seus próprios costumes, língua, arquitetura, arte, literatura, música, dança, cozinha, vestuário etc... Na era pré-islâmica, a maioria dos árabes seguia religiões politeístas. Algumas tribos adotaram o cristianismo ou o judaísmo e poucos indivíduos, aparentemente, observavam o monoteísmo. Isso certamente explicaria a necessidade dos árabes de possuir uma forte religião monoteísta própria, nos moldes do judaísmo e do cristianismo que os unisse também na religião. Talvez essa tenha sido a ideia original de Maomé na fundação do islamismo. É da história desses povos que pretendemos tratar nessa publicação, a partir do advento do islamismo. 
Teatro de operações das conquistas islâmicas
Resumidamente, já ao final da década de 620, Maomé teria a Península Arábica unificada e iniciado os confrontos contra os bizantinos, herdeiros do Império Romano do Ocidente. Rapidamente efetivaram a conquista do Levante, Norte da África, Mesopotâmia e Pérsia, avançando até a China e Índia. Em 711, exércitos formados, em sua maioria, por mouros do Norte da África, realizaram a conquista Omíada da Espanha. A Península Ibérica passou então a ser conhecida, em árabe clássico, como Al-Andalus, que em seu pico incluiu a maioria das atuais Espanha, Portugal e Septimânia (região a sudeste da França moderna). Em 827 os árabes ocuparam Mazara, na Sicília, desenvolvendo-a como um porto. Posteriormente consolidaram seu domínio sobre o resto da ilha e algo do sul da Itália. As diferenças em religião e cultura conduziram a um conflito de séculos de duração com os reinos cristãos da Europa que tentaram recuperar as áreas ocupadas, no que ficou conhecido como Reconquista. Em 1224 os muçulmanos foram expulsos da Sicília para o povoamento de Lucera, destruído pelos cristãos europeus em 1300. A queda de Granada, em 1492, marcou o fim do domínio muçulmano na Península Ibérica, embora uma minoria ainda tenha persistido até sua expulsão final em 1609.
Vamos ao panorama completo.

II - ANTECEDENTES

As prolongadas e crescentes guerras Bizantino – Sassânida[4] dos séculos VI e VII e as recorrentes eclosões de peste bubônica (Peste de Justiniano), exauriram e deixaram vulneráveis ambos impérios em face da súbita emergência da expansão dos árabes. A última dessas guerras terminou com a vitória dos bizantinos: o imperador Heráclio recuperou todos os territórios perdidos e restaurou a “Cruz Verdadeira”[5] em Jerusalém, em 629 (esses assuntos foram abordados em minha postagem “Breve História do Império Romano”). Entretanto, nenhum dos impérios teve qualquer chance de se recuperar, pois em poucos anos foram atingidos pelo ataque dos árabes recém unidos pelo Islamismo, assemelhados a um tsunami humano. Segundo George Liska, “o desnecessário e prolongado conflito persa – bizantino abriu o caminho para o islamismo”.
Visto que o enfoque deste artigo é essencialmente histórico, pretendendo tratar apenas das conquistas dos muçulmanos e mencionando, somente de passagem, a consequente reação dos europeus em forma das Cruzadas, sobre Maomé apresentaremos tão somente um pequeno resumo para nivelar o conhecimento dos leitores. 
Profeta Maomé recitando o Alcorão em Meca
Maomé (em árabe Muhammad), nascido em Meca, Península Arábica, cerca de 570 e morto em 8 de junho de 632 da era cristã, é a figura central e fundador do Islamismo, religião estruturada pelo Alcorão (ou Corão) - um texto considerado por seus adeptos como a palavra escrita de Deus (Alá) -, e pelos seus ensinamentos e exemplos normativos. Os seguidores do Islamismo são conhecidos como muçulmanos e consideram Maomé como o último profeta de Deus. Ganhou, inicialmente, poucos seguidores e enfrentou hostilidades de algumas tribos de Meca. Para escapar à perseguição, Maomé enviou seguidores à Abissínia (Etiópia) antes de emigrar com eles de Meca para Medina, no ano de 622, evento (Hégira) que marca o início do calendário islâmico. Em Medina, Maomé uniu as tribos sob a constituição de Medina e após oito anos de intermitentes conflitos com as tribos de Meca, reuniu um exército de 10.000 muçulmanos convertidos e marchou sobre Meca onde, num ataque sem oposição, tomou a cidade com pouco derramamento de sangue.
Ele estabeleceu uma nova entidade político-religiosa unificada na Península Arábica que, sob os subsequentes califados Rashidun[6] e Omíada (Omíada), viu um século de rápida expansão. O Islamismo originado no início do século VII, em Meca, rapidamente espalhou-se por toda a Península; no século VIII o império islâmico se estendia da Península Ibérica, no oeste, ao rio Indus, no leste. A idade áurea do islamismo refere-se ao período que vai do século VIII ao século XIII, quando muito do mundo islâmico histórico experimentou um florescimento científico, econômico e cultural. A expansão do mundo muçulmano envolveu vários califados e impérios, negociantes e conversões por atividades missionárias. Em 632 poucos meses após retornar da Peregrinação de Despedida, Maomé adoeceu e morreu, não sem antes ter a maioria da Península Arábica convertida ao Islamismo. O império que resultou, estendia-se das fronteiras da China e da Índia, através da Ásia Central, do Oriente Médio, África do Norte, Sicília e a Península Ibérica, até os Pirineus.
As primeiras conquistas muçulmanas, também denominadas conquistas árabes e primeiras conquistas islâmicas, começaram com o profeta islâmico Maomé, no século VII da era cristã. 
Arenas das Guerras Ridda na
Península Arábica
Ao final da década de 620, Maomé já havia conquistado e unificado muito da Arábia sob o governo muçulmano e foi sob a sua liderança que as primeiras escaramuças muçulmano-bizantinas tiveram lugar. Apenas alguns meses após Heráclio e o general persa Shahrbaraz terem concordado com a retirada das tropas persas das províncias orientais ocupadas, em 629, tropas árabes e bizantinas já se confrontaram em Mu’tah. Maomé morreu em 632 e foi sucedido por Abu-Bakr, o primeiro califa com indisputado controle de toda a Península Arábica, após as vitoriosas Guerras Ridda[7], que consolidaram o poderoso estado muçulmano em toda a península.

III – CAMPANHAS MILITARES

III.1 – CONQUISTA DO LEVANTE (634 A 641)
A Região do Levante e fronteiras

O Levante é um termo geográfico histórico aproximado, que se refere a uma grande área do Mediterrâneo Oriental. Situado no sudoeste da Ásia ao sul das Montanhas Taurus, é limitado pelo Mar Mediterrâneo, a oeste, o Deserto Arábico, ao sul e a Mesopotâmia, a leste. O termo é hoje algumas vezes usado para se referir a eventos ou estados modernos na região que fazem fronteiras imediatas com o Mediterrâneo Oriental: Chipre, Israel, Jordânia, Líbano, Palestina e Síria. No seu mais amplo senso histórico, o Levante incluiria, além do Mediterrâneo Oriental e suas ilhas, todos os países em suas costas, desde a Grécia até a Cirenaica (região costeira oriental da Líbia).
Embora as forças árabes muçulmanas tenham aparecido nas fronteiras do sul, mesmo antes da morte de Maomé, em 632, a invasão real do Levante – que se tornaria a Província Islâmica de Bilad al-Sham, como parte das conquistas islâmicas - começou em 634, com os seus sucessores, califas Abu Bakr e Umar ibn Khattab, da dinastia Rashidun, tendo Khalid ibn al-Walid como seu mais importante líder militar.
A Síria (que não tem nada a ver com a atual Síria, mas que ocuparia hoje todas as suas terras, além do Líbano e parte da Turquia) tinha estado sob domínio romano por séculos (desde 64 AC), antes da conquista dos árabes muçulmanos e havia sido invadida pelos persas sassânidas em várias ocasiões durante os séculos III, VI e VII, além de sujeita aos ataques dos aliados árabes dos sassânidas, os Lakhmids[8]. Durante o período romano, após a queda de Jerusalém no ano 70 DC, toda a região da Judeia, Samaria e Galileia foi rebatizada de Palestina (I e II). Os romanos também renomearam uma área de terra que envolvia o Negev[9], Sinai e a costa ocidental da Península Arábica como Palestina Salutoris (Palestina III). Durante a última das guerras Romano-Persa, iniciada em 603, os persas, sob Khosrau II, tiveram sucesso na ocupação da Síria, Palestina e Egito por mais de uma década antes de serem forçados pelas vitórias de Heráclio a aceitar a paz de 628. Assim, às vésperas das conquistas muçulmanas, os romanos (agora convencionalmente chamados bizantinos), estavam ainda em processo de reconstrução da sua autoridade nesses territórios, em algumas das áreas perdidas por eles por quase 20 anos. A Síria era, em sua maioria, uma terra siríaca e helenizada com alguma presença judia e uma população parcialmente árabe, especialmente em suas áreas leste e sul. Os cristãos siríacos, judeus e árabes estavam por lá desde tempos pré-romanos e alguns haviam abraçado o cristianismo desde que Constantino o havia legalizado no século IV e mudado a capital da Itália para o Bizâncio (renomeado Constantinopla), do qual é derivado o nome bizantino.
Os árabes da Síria possuíam pouco significado até a migração da poderosa tribo Ghassan do Iêmen (extremo sul da Península Arábica) para lá, a qual, a partir daí, governou um estado semiautônomo com seu próprio rei sob os romanos. Essa dinastia Ghassan tornou-se uma das dinastias do Império, principescamente honrada, com o rei governando árabes da Jordânia e sul da Síria, desde sua capital em Bosra. O último dos reis Ghassan, que governava ao tempo da invasão muçulmana, foi Jabla-bin-Al-Aiham.
O imperador bizantino (romano) Heráclio, após retomar a Síria dos Sassânidas, estabeleceu novas linhas de defesa, de Gaza (noroeste do atual Israel) até a extremidade sul do mar Morto. Tais linhas foram projetadas somente para proteger as comunicações de bandidos e o grosso das defesas bizantinas estavam concentradas ao norte da Síria, voltadas para seus tradicionais inimigos, os persas sassânidas. Essa linha de defesa tinha como desvantagem o fato de permitir aos muçulmanos, que vinham do deserto ao sul, chegarem até Gaza antes de encontrar as tropas bizantinas regulares. O século VII foi uma época de rápidas mudanças militares no Império Bizantino. Certamente, ele não estava num estado de colapso ao enfrentar o novo desafio da Arábia, após exaurido pelas recentes guerras Romano-Persas, mas falhou completamente ao lidar efetivamente com o problema. 
Abu Bakr, sucessor de Maomé (com o rosto coberto),
impede que a população de Meca o apedreje
Maomé morreu em junho de 632 e Abu Bakr foi indicado Califa e sucessor político em Medina; o ano 12 da Hégira, 18 de março de 633, amanheceu com a Arábia unida sob a sua autoridade central, a do Califa em Medina, após vencer as Guerras Ridda. É difícil dizer se Abu Bakr pretendia uma completa conquista imperial; contudo, ele pôs em movimento uma trajetória histórica que em apenas umas poucas décadas conduziria a um dos maiores impérios da história, iniciando com uma confrontação com o Império Persa, sob o general Khalid ibn al-Walid.
A província da Síria foi a primeira a ser arrancada do controle bizantino. Os ataques árabe-muçulmanos que se seguiram às guerras Ridda, prepararam os bizantinos para enviar uma expedição maior ao sul da Palestina, derrotada pelas forças árabes sob o comendo de Khalid ibn al-Walid, na batalha de Ajnadayn (634). Seguindo suas vitórias, os exércitos árabes tomaram Damasco em 636, ao que se seguiu a tomada de Baalbek, Homs e Hama. Contudo, outras cidades fortificadas resistiram a despeito da horda do exército imperial e tiveram de ser conquistadas individualmente. Jerusalém caiu em 638, Cesareia em 640 enquanto outras aguentaram até 641.
De acordo com a tradição muçulmana, em alguma noite do ano 621, o profeta Maomé teria sido carregado por seu corcel mitológico, “al-Buraq”, de Meca para o “Monte do Templo”[10], em Jerusalém. De acordo com a tradição, de lá ele ascendeu ao Céu onde falou com Alá. É dessa época o nascimento do amor eterno dos árabes por Jerusalém, que levantaria tantas questões internacionais e que perdura até hoje. Embora o Corão não esclareça onde exatamente Maomé subiu ao Céu, em seguida à conquista muçulmana da região da Palestina, o califado aí construiu a mesquita de Al-Aqsa, como símbolo do evento; ela é hoje considerada a mais antiga edificação islâmica do mundo, ainda em uso. Além dessa, várias outras estruturas muçulmanas foram construídas por toda a região da Palestina. 

[1] Berberes são os grupos étnicos nômades indígenas das regiões norte-africanas da antiga Barbária (Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito) e do Saara. Distribuíam-se numa área que ia do Oceano Atlântico ao Oásis Siwa, no Egito, e do Mar Mediterrâneo ao Rio Niger. Historicamente falavam línguas berberes que, juntas, formam o ramo Berbere da família Afro-Asiática.
[2] As Montanhas Atlas são uma cadeia montanhosa no Maghreb. Elas se estendem por 2.500 km através da Argélia, Marrocos e Tunísia. O pico mais alto da cadeia é o Jebel Toubkal, com uma altura de 4.167 m, no sudoeste do Marrocos. Elas separam as costas do Mediterrâneo e do Atlântico do Deserto do Saara e são basicamente habitadas por populações berberes.
[3] Semítico é um termo usado para definir um grupo étnico, cultural ou racial que fala ou falava línguas semíticas, um ramo da família afro-asiática de línguas originadas no Oriente Médio.
[4] As guerras Bizantino – Sassânida (285 a 629 DC), também conhecidas como guerras Iraniana- Bizantina, referem-se a uma série de conflitos entre o Império Romano (Bizantino) do Oriente e a dinastia Sassânida do Império Persa. Uma continuação das Guerras Romana – Persa (que iniciaram em 54 AC), o conflito envolveu diversas campanhas menores e tratados de paz que perduraram por vários anos.
[5] A “Cruz Verdadeira” é o nome dado a resíduos físicos que, por tradição católica, acredita-se ser da cruz em que Cristo foi crucificado. Muitas igrejas possuem fragmentos que, alegadamente, são da Cruz Verdadeira. Sua autenticidade não é universalmente aceita pelas igrejas cristãs e a precisão dos relatórios que cercam a sua descoberta é questionada por algumas delas.
[6] Um Califado é uma área que possui um administrador islâmico conhecido como Califa, uma pessoa considerada sucessor religioso de Maomé e líder de toda a comunidade muçulmana. Os califas Rashidun, que sucederam diretamente a Maomé como líderes da comunidade muçulmana, foram escolhidos pela shura, um processo de consulta à comunidade que alguns consideram como uma forma primitiva de democracia islâmica. Durante a história do Islã após o período Rashidun, muitos estados muçulmanos, quase todos eles monarquias hereditárias, têm alegado ser califados. Embora os califas retroajam a Maomé, não são tidos como tendo o mesmo poder profético que ele tinha. O Califado Rashidun foi o califado islâmico do período inicial do Islã, compreendendo os quatro primeiros califas, os “Corretamente Guiados” ou califas Rashidun. O califado Omíada foi o segundo dos quatro principais califados árabes estabelecidos após a morte de Maomé.
[7] As Guerras Ridda, também conhecidas como Guerras de Apostasia, foram uma série de campanhas militares lançadas pelo califa Abu Bakr, contra tribos rebeldes árabes, entre 632 e 633, logo após a morte de Maomé. A posição dos rebeldes era a de que eles se haviam submetido a Maomé como o Profeta de Deus, mas não deviam nada a Abu Bakr. A maioria das tribos rebeldes foram derrotadas e reintegradas no Califado.
[8] Os Lakhmids formavam um reino árabe ao sul do Iraque, que fizeram sua capital em al-Hirah, em 266. Os poetas o descreviam como um paraíso na terra. As ruínas de al-Hirah estão situadas 3 km ao sul de Kufa, na margem ocidental do rio Eufrates.
[9] O Negev é uma região desértica e semidesértica do sul de Israel com área próxima da metade da área do país. Em sua extremidade sul fica o Golfe de Aqaba e a cidade turística de Eilat.
[10] O “Monte do Templo”, uma colina localizada na Cidade Antiga de Jerusalém, é um dos mais importantes locais religiosos do mundo. Tem sido venerado como local sagrado por milhares de anos pelo Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. O sítio é dominado por três monumentais estruturas do início do período Omíada: a mesquita Al-Aqsa, a Cúpula da Rocha e a Cúpula da Corrente, bem como quatro minaretes. Os muros e portões de Herodes, com acréscimos, datando do final do período bizantino e início do islâmico, correm pelos flancos do Monte.

(Continua com a Parte 2)

sábado, 4 de março de 2017

A REFORMA E OS REFORMADORES - PARTE 7 (Última)

VIII - RESULTADOS E CONSEQUÊNCIAS DA REFORMA

No que se refere à Igreja Católica Apostólica Romana, não há dúvida de que a Reforma destruiu a unidade de fé e organização eclesiástica dos povos cristãos da Europa, removeu muitos milhões do que considerava, até então, a verdadeira Igreja Católica e despojou-os da maior parte dos meios saudáveis de cultivo e manutenção da vida sobrenatural. Um incalculável dano resultou do ponto de vista religioso. A falsa doutrina fundamental de justificação apenas pela fé, ensinada pelos reformadores, produziu uma lamentável superficialidade na vida religiosa. O zelo pelas boas obras desapareceu, o ascetismo que a Igreja havia praticado desde sua fundação foi desprezado, objetos de caridade e eclesiásticos não foram mais cultivados adequadamente, os interesses sobrenaturais foram ao solo e as aspirações naturalistas visando o puramente mundano se espalharam. A negação da autoridade divinamente instituída da Igreja no que concerne à doutrina e ao governo eclesiástico, abriu as portas às excentricidades, dando origem à divisão sem fim de seitas e às disputas sem fim características do Protestantismo, conduzindo apenas à completa descrença que necessariamente surgiu dos princípios protestantes. Da real liberdade de crença entre os reformadores do século XVI, não restou um só traço; ao contrário, a maior tirania em questões de consciência foi apresentada pelos representantes da Reforma. A mais nociva predominância do poder secular sobre a religião foi promovida, graças ao reconhecimento, pela Reforma, das autoridades seculares como suprema nas questões religiosas. Assim surgiram, desde o início, as várias “igrejas nacionais protestantes”, totalmente discordantes do universalismo cristão da Igreja Católica e dependentes, de acordo com sua fé e organização, da vontade do poder secular. Nesse sentido, a Reforma foi o principal fator na evolução do absolutismo real. Em cada terra em que ingressou, a Reforma foi a causa de indescritível sofrimento para o povo; criou guerras civis que duraram décadas, com todos os horrores e devastações; as pessoas eram oprimidas e escravizadas; tesouros de arte incontáveis e manuscritos sem preço foram destruídos; entre os membros de uma mesma terra e raça a discórdia foi semeada. A Alemanha em particular, lar original da Reforma, foi reduzida a um estado de lastimável miséria pela Guerra dos Trinta Anos e o Império Germânico foi despejado da posição de liderança que ocupou por séculos na Europa. Só gradualmente e devido a forças que não se originaram da Reforma, mas foram condicionadas por outros fatores históricos, as feridas sociais foram curadas, mas a corrosão religiosa ainda hoje continua a despeito dos fervorosos sentimentos religiosos que sempre caracterizaram muitos seguidores individuais da Reforma.

IX - CONCLUSÕES

No que nos diz respeito, o “Aurélio” define a palavra cisma como a separação – ou cisão - do corpo e da comunhão de uma religião. Mas também a define como, simplesmente, uma dissidência de opiniões. Nesse sentido, vários cismas já ocorreram dentro da Igreja Católica Apostólica Romana – que, até a Reforma, tinha como sinônimo, o Cristianismo -, simplesmente Igreja, e penso ser natural que assim tenha sido. E explico as razões desse meu ponto de vista, procurando não me estender demais em questão tão complexa.
A primeira delas, por evidente, é que o Cristianismo, como outras religiões, mais ou menos antigas, são instrumentos criados, por inspiração divina ou não, pela humanidade e, como tal, passíveis de erros ou interpretações e daí a dissidência futura de opiniões.
No caso do Cristianismo, tal questão é muito mais profunda. O Cristianismo, que resultou desde cedo na Igreja Católica Apostólica Romana, pelo nascimento de Cristo, uma dissidência do Judaísmo surgida na terra dos judeus, é religião monoteísta. Sem considerar os milagres do Velho Testamento do Judaísmo (e posteriormente do Cristianismo), a religião dos hebreus não lhes criou tantos problemas de interpretação quanto o Cristianismo, a começar pelo fato de que os judeus continuam a esperar pelo seu Messias, isto é, o seu Deus encarnado que ainda não chegou, o que lhes poupou - e poupa - um sem número de dúvidas e explicações. Entretanto, muito se enganam os que pensam que dentro do judaísmo não houve e não há cisões. Na verdade, tais cisões foram tremendamente variadas e iniciaram tão cedo que já no início da época dos reis judeus, as doze tribos milenares se separaram em dois grupos: um de dez tribos e outro de duas tribos apenas. E o interessante é que a genealogia de Abrahão, o ramo considerado autêntico pelos judeus, que ficou com sua sede em Jerusalém, com o templo de Salomão, foi o grupo de duas tribos, sendo o outro grande grupo obscurecido pelo tempo e acabando por desaparecer por completo.
Quem imaginar que a Reforma de fato teria ocorrido por razões extraordinárias, é porque nunca leu sobre a história da Igreja que, desde a sua fundação, sempre contou com profundas dissensões internas de ordem doutrinária.
O Cristianismo, religião nascida com e por Jesus Cristo, segundo ela, Deus encarnado, que viveu como humano até os seus 33 anos, teve que produzir explicações convincentes sobre a existência simultânea do Deus espiritual que ninguém conheceu, e do Deus que existiu na Terra em forma humana, Cristo, além do Espírito Santo, conceito ainda mais complexa, numa religião monoteísta. Essa foi apenas uma das várias e complexas questões surgidas com o Cristianismo, para o qual, desde a sua fundação, os apóstolos, inicialmente, e os que prosseguiram em sua fundamentação e organização, posteriormente, tiveram que criar um conjunto de preceitos de direito eclesiástico – cânones – que resultaram, finalmente, numa Doutrina da Igreja. Foi essa Doutrina da Igreja, que sempre evoluiu e prossegue evoluindo, que desde a sua fundação foi cenário de infinitas discussões, dissidências, fundação de novas seitas ou ramificações e que, no passado, a Igreja conseguiu, de uma ou de outra forma, manter indivisa e única; até uma certa época, pelo menos. No início, as dissidências da doutrina da Igreja eram tratadas como heresias do Cristianismo e resolvidas sem rompimentos. É preciso também entender que nos primeiros anos do Cristianismo, além dele existia apenas uma outra religião monoteísta – o Judaísmo – já que o Budismo é muito mais uma filosofia de vida do que uma religião. Para quem quiser se aprofundar no assunto e saber como a Igreja evoluiu, eu aconselho a leitura de “Early History of the Christian Church”, de Louis Duchesne, principalmente o seu primeiro volume que trata do assunto desde a fundação da Igreja até o século III.
O primeiro cisma importante com que a Igreja se defrontou, foi o chamado “Grande Cisma do Ocidente-Oriente” ou “Cisma de 1054” ou “O Grande Cisma”, resultado de um processo muito gradual, cujas causas deveriam ser buscadas séculos antes de que houvesse suspeita de seu efeito final. Embora Roma sempre tenha reivindicado uma autoridade especial sobre as demais igrejas, pelo menos dois outros bispos, conhecidos como patriarcas, sempre mereceram posição destacada no Cristianismo: o Bispo de Alexandria e o de Antioquia. A esses se juntaram logo os Bispos de Constantinopla e Jerusalém, também confirmados como Patriarcas pelo Concílio de Calcedônia. Esses quatro bispos possuíam precedência sobre os demais bispos da Igreja. O Bispo de Roma, o Papa, mantinha um status mais elevado pela sua posição de sucessor de São Pedro, além de ter particular importância pelo fato de Roma ser a Capital do Império Romano, completando assim o quinto patriarcado. Mesmo depois que Constantino moveu a capital do Império Romano para Constantinopla (do Ocidente para o Oriente), em 330 DC, o Papa manteve sua posição de primeiro entre os iguais (primus inter pares) na hierarquia da Igreja. Sem entrar em maiores detalhes que aqui não cabem, diremos apenas que foram muitas as causas do Cisma, políticas e religiosas, que acabaram por separar da Igreja boa parte da cristandade, que passou a ser conhecida como Igreja Ortodoxa. A cisão foi tão forte que provocou, entre outras coisas, a excomunhão recíproca do Patriarca de Constantinopla, Michael I Cerularius e do Papa Leão IX, incidente somente encerrado com a reconciliação de 1965 entre o Papa Paulo VI e o Patriarca de Constantinopla Athenagoras I que anularam as excomunhões de 1054, num gesto simbólico de boa vontade que não constituiu qualquer espécie de reunião.
Trezentos anos após esse Grande Cisma, a sede papal foi transferida para Avignon e, em seguida, ocorreu o “Cisma do Ocidente”, quando a Igreja chegou a ter três Papas simultaneamente, conforme foi visto no texto. Finalmente, em 1517, a Igreja enfrentou a Reforma.
Nas duas primeiras grandes questões ou cismas, é importante notar que a doutrina da Igreja saiu praticamente intocada, embora pela primeira, a autoridade Papal tenha sido abandonada por parte da cristandade. O mesmo não aconteceu com a Reforma, quando praticamente várias religiões foram criadas, algumas com alterações fundamentais em relação à Igreja Católica, além do rompimento com o Papa. Na minha opinião, ao invés de complicar, isso talvez explique mais facilmente as razões da Reforma.
Para quem quiser realmente entender a Reforma, é preciso ter em mente que o real cristão necessita crer em coisas que dependem exclusivamente de fé, para as quais não há explicações materiais. Este é ponto de partida para tudo, inclusive a questão das indulgências. Ocorre que, antes da Reforma, os seus defensores eram todos religiosos cristãos e deveriam, portanto, crer e aceitar os pontos complexos; se não cressem, deveriam discutir as questões ao invés de cindir, que seria – e foi - o caminho mais fácil. É claro que Lutero, como padre católico, era instruído, honesto e poderia discordar e ter razão em parte de suas discordâncias da doutrina da Igreja Católica Romana. Como vimos isso sempre aconteceu desde o início e as diferenças sempre foram contornadas. Entretanto, a Igreja não poderia abrir mão da sua doutrina fundamental. Lutero teve a chance de discutir suas teses durante a Dieta de Worms, em 1521; ele as apresentou, discutiu, foi derrotado, mas continuou dissidente. Em consequência, foi excomungado e colocado fora da Lei, mas foi protegido por Frederick, o Sábio, Eleitor da Saxônia e desafiou o que aconteceu depois; a partir deste momento, a reforma tornou-se política. Em cima de sua revolta, outros aproveitadores surgiram e provocaram guerras sangrentas que jamais teriam surgido não fosse o seu movimento. Na verdade, as 95 Teses de Lutero poderiam ter sido discutidas em Wittenberg, onde foram lançadas.
Como sou obrigado a concluir, em minha opinião, as duas partes – Igreja Católica e Reformadores – tiveram culpa no desenvolvimento de cenário que surgiu e se desenvolveu. A Igreja Católica por não saber conduzir a questão, embora os motivos que a provocaram, transcendessem as questões religiosas; os Reformadores, por terem usado os motivos religiosos para conseguir a vitória final, unindo-se às razões materiais dos governantes locais. Muitas das reivindicações levantadas eram muito pouco importantes para terem as consequências e repercussão que tiveram. Tal é o caso, por exemplo, de terem a Bíblia e os ofícios religiosos praticados na própria língua dos seus países, algo que, mais tarde, até a própria Igreja Católica veio a praticar espontaneamente. Nunca houve concordância entre os diversos reformadores surgidos e logo as lutas internas iniciaram, sendo contestadas por Lutero, o que de pouco adiantou; e logo surgiram os múltiplos ramos do movimento. Mais do que isso, ostensivamente eles lutaram entre si e a maior prova disso é que as várias ramificações da Reforma vingaram exatamente nos países em que elas se originaram; só posterior e muito lentamente, cada uma dessas facções foi conseguindo mais adeptos, em geral ainda descendentes daqueles países.
Lutero e Zwingli, por exemplo, lutaram ostensivamente entre si. O primeiro gesto aberto de Zwingli contra um dos dogmas cristãos, foi comer salsichas durante a Quaresma em 1522, marcando o início da Reforma suíça. Enfrentando menos oposição do que Lutero enfrentara na Alemanha, conseguiu persuadir Zurich a aceitar a avassaladora Reforma; mas como Lutero, logo foi também confrontado por reformadores mais radicais do que ele próprio.
De forma geral, praticamente todas as objeções inicialmente levantadas pelos reformadores poderiam ter sido resolvidas pelas duas partes. Não foram porque outras bandeiras, de ordem material – mas principalmente política, como consequência do próprio Renascimento -, foram levantadas, pelos reformadores, que interessavam sobremaneira aos governantes locais. A Igreja acumulou, ao longo dos tempos, por força de doações para justos fins, um importante patrimônio que causava inveja aos governantes dos feudos da época. A bandeira de desapropriação de bens materiais e terras da Igreja caiu como uma luva às pretensões dos poderosos e falidos senhores feudais daquela época. Com isso, eles não apenas permitiram a cisão, como a estimularam, além de, muitas vezes, obrigarem os seus súditos a abraçar as ideias da Reforma nos vários países onde ela se desenvolveu. Basicamente, o poder feudal acabou por dominar a Reforma em função dos bens da Igreja que passariam aos senhores feudais.

A grande verdade é que a Reforma inflamou na Europa uma conflagração de violência sem paralelo. Devastou a Cristandade ocidental por mais de um século, trazendo consigo violento ódio e intolerância que, em algumas comunidades cristãs, perdura até os dias de hoje. Nenhuma disputa, em qualquer outra religião, igualou a força destrutiva, a brutalidade e amargura iniciada em Wittenberg em 1517. Apenas como ilustração e como assunto para meditar, lembremos a Guerra dos Trinta Anos, consequência mais distante da Reforma, que causou um número estimado entre 3 e 11 milhões de mortos.