Homenagem ao lendário herói ancestral dos ingleses que deu título a um dos considerados "Cem Maiores Livros do Mundo" e tido como o mais antigo escrito em "Old English".

segunda-feira, 13 de maio de 2024

A CONTURBADA FRANÇA PÓS-REVOLUÇÃO (Parte 1)

 

I - INTRODUÇÃO

A França do final do século XVIII e de todo o século XIX foi um país sujeito a muitas, complexas e profundas transformações políticas e sociais. Entretanto, o próprio evento da Revolução Francesa de 1789 e o período que imediatamente lhe seguiu, início do século XIX, sob Napoleão, têm sido universal e intensamente narrados e discutidos sob todas as formas, de maneira a torná-los sobejamente conhecidos. A época que sucedeu à queda e prisão definitiva de Napoleão Bonaparte, porém, foi extremamente conturbada e de difícil entendimento, creio eu, até mesmo para os franceses, fato que constatei pessoalmente quando morando e trabalhando naquele país por curtos seis meses. Isto, sem considerar a relativamente menor exploração literária por parte de historiadores e escritores da época e posteriores, principalmente se considerarmos a enorme quantidade de personagens históricos envolvidos, entre reis, políticos e escritores que participaram desse conturbado século XIX para a França e Europa de uma maneira geral. Esta a razão que me levou a realizar a presente pesquisa, com o que pretendo aumentar o meu próprio conhecimento sobre tão importante assunto, além de contribuir para a cultura geral do meus leitores, se atingir meu objetivo.
O longo século XIX, após Napoleão Bonaparte passou, numa resumida visão, pelos seguintes importantes eventos: a “Restauração Bourbon” (1814/1815 – 1830); a “Monarquia de Julho” (1830 – 1848); a “Segunda República” (1848 – 1852); o “Segundo Império” (1852 – 1870); a “Terceira República” (1870 – 1940), passando por uma “Longa Depressão” (1873 – 1890) e a famosa “Belle Époque” francesa (1871 – 1914). Cobriremos com detalhe cada um desses eventos.

II – A RESTAURAÇÃO BOURBON

A “Restauração Bourbon” foi o período da história francesa durante o qual a Casa dos Bourbon, na figura de Louis XVIII - a mesma de Louis XVI, durante o qual se deu a Revolução Francesa -, retornou ao poder após a primeira queda de Napoleão em 3 de maio de 1814. Brevemente interrompida pelos “Cem Dias” (período entre o retorno de Napoleão da Ilha de Elba a Paris, em 20 de março de 1815, e a Segunda Restauração de Louis XVIII em 8 de julho de 1815 – 110 dias) em 1815, a Restauração durou até a Revolução de 26 Julho de 1830[1]. Louis XVIII[2] e Charles X, irmãos de Louis XVI, o rei executado pela Revolução de 1789, sucessivamente assumiram o trono e instituíram um governo conservador que pretendia restaurar as propriedades, senão todas as instituições, do Antigo Regime[3]. Os apoiadores exilados da monarquia retornaram à França, mas não conseguiram reverter a maioria das mudanças feitas pela Revolução Francesa. Então exaurida por décadas de guerras, a nação experimentou um período de paz interna e externa, de prosperidade econômica estável e os primórdios da industrialização.

II.1 - ANTECEDENTES

Napoleão Bonaparte, feito Imperador
por uma revolução para destituir um Rei
Seguindo à Revolução Francesa (1789-1799), Napoleão Bonaparte tornou-se o governante da França, como Primeiro Cônsul, inicialmente e, posteriormente, como Imperador. Após anos de expansão do seu Império Francês por sucessivas vitórias militares, uma coalizão de potências europeias derrotou-o na “Batalha da Sexta Coalização”. Áustria, Prússia, Rússia, Espanha, Reino Unido, Portugal, Suécia, Sardenha e alguns Estados Germânicos derrotaram a França, enviando Napoleão ao exílio na Ilha de Elba, encerrando o “Primeiro Império” em 1814 e restaurando a monarquia aos irmãos de Louis XVI. A Restauração dos Bourbon durou de 6 de abril de 1814 até os levantes populares da Revolução de Julho de 1830. Rigorosamente, houve um interlúdio na primavera de 1815, os “Cem Dias”, quando o retorno de Napoleão forçou os Bourbon a fugirem da França. Quando Napoleão foi novamente derrotado pela “Sétima Coalizão” (Batalha de Waterloo, quando Napoleão foi definitivamente derrotado), eles retornaram ao poder em julho de 1815. Com a paz do Congresso de Viena, os Bourbon foram tratados com polidez pelas monarquias vitoriosas, mas tiveram que devolver praticamente todos os ganhos territoriais feitos pelos revolucionários e França Napoleônica desde 1789.

II.2 – MONARQUIA CONSTITUCIONAL

Diferentemente do absolutista Antigo Regime, o regime da Restauração Bourbon foi uma monarquia constitucional (também conhecida como “monarquia limitada”, “monarquia parlamentar” ou “monarquia democrática”), uma forma de monarquia em que o rei exerce sua autoridade de acordo com uma constituição e não pode tomar decisões isoladamente, ou seja, com limites em seu poder. O novo rei, Louis XVIII, aceitou a grande maioria das reformas instituídas entre 1792 e 1814, tendo como sua política básica, a continuidade. Não tentou recuperar terras e propriedades tomadas dos exilados reais perseguindo, de forma pacífica, os principais objetivos da política externa de Napoleão, como por exemplo, a limitação da influência austríaca. Contrariou Napoleão no que se referia à Espanha e ao Império Otomano, restaurando a amizade que prevaleceu até 1792. 
Louis XVIII, primeiro Rei da
Restauração Bourbon
Politicamente, o período foi caracterizado por uma reação conservadora aguda e por consequentes perturbações e agitações civis menores, mas persistentes. Por outro lado, o sistema governante permaneceu relativamente estável até o subsequente reinado de Charles X, além de assistir o restabelecimento da Igreja Católica como o maior poder na política francesa. Durante a Restauração Bourbon, a França experimentou um período de prosperidade econômica estável e iniciou as preliminares da industrialização.

II.3 – ALTERAÇÕES PERMANENTES NA SOCIEDADE FRANCESA

As eras da Revolução Francesa e de Napoleão trouxeram uma série de mudanças importantes para a França, que a Restauração Bourbon não reverteu. A França era agora altamente centralizada, com todas as decisões importantes tomadas em Paris. A geografia política foi completamente reorganizada e tornada uniforme, com a nação dividida em mais de 80 departamentos que permanecem até hoje (atualmente 101). Cada departamento tinha uma estrutura administrativa idêntica rigidamente controlada por um prefeito indicado por Paris. O emaranhado da sobreposição de jurisdições legais do velho regime foi totalmente abolido e havia agora um código legal padronizado administrado por juízes indicados por Paris e apoiados pela polícia sob controle nacional.
Os governos revolucionários haviam confiscado todas as terras e prédios da Igreja Católica, vendendo-os a inumeráveis compradores da classe média sendo politicamente impossível restaurá-los. O bispo ainda governava sua diocese (ou bispado, distrito eclesiástico sob a jurisdição de um bispo) alinhada com os novos limites do departamento e se comunicava com o Papa através do governo de Paris. Bispos, padres, freiras e outros religiosos recebiam salários do Estado. Todos os antigos ritos e cerimônias religiosas foram retidas e o governo manteve os prédios religiosos. A Igreja teve permissão para operar seus seminários, bem como a maioria de suas escolas locais, embora esta tenha se tornado uma questão política central no século XX. Os bispos tinham muito menos poder que antes e não tinham voz política. Contudo, a Igreja reinventou-se com uma nova ênfase na piedade pessoal que lhe proporcionou uma maior influência na psicologia do fiel. A educação pública foi centralizada, com o “Grande Mestre da Universidade da França” controlando cada elemento do sistema educacional a partir de Paris. Novas universidades técnicas foram abertas em Paris que até hoje possuem um papel crítico no treinamento da elite.
O conservadorismo foi fortemente dividido, entre a velha aristocracia que retornou e as novas elites surgidas com Napoleão, após 1796. A velha aristocracia queria muito recuperar suas terras, mas não sentiu lealdade no novo regime. As novas elites, a “nobreza do império”, ridicularizava o grupo antigo como remanescentes fora de moda de um regime desacreditado que havia conduzido a nação ao desastre. Os dois grupos compartilhavam do temor da desordem social, mas o nível de desconfiança, bem como as diferenças culturais foram grandes demais e a monarquia foi muito inconsistente nas suas políticas para tornar possível uma cooperação.
A velha aristocracia que retornava recuperou muito da terra que havia possuído diretamente. Contudo, eles perderam todos os direitos senhoriais das terras agricultáveis não recuperadas e os camponeses não se encontravam mais sob o seu controle. A aristocracia pré-revolucionária havia flertado com as ideias do Iluminismo[4] e Racionalismo. Agora, a aristocracia era muito mais conservadora e apoiadora da Igreja. Para os melhores empregos, a meritocracia era a nova política e os aristocratas tinham que competir diretamente com os negócios crescentes e as classes profissionais.
O sentimento anticlerical público tornou-se mais forte do que nunca, mas era agora baseado em certos elementos da classe média e mesmo dos camponeses. As grandes massas da população francesa eram formadas por camponeses do interior ou trabalhadores empobrecidos das cidades. Eles ganharam novos direitos e um novo sentido de possibilidades. Embora aliviados de muitas das antigas cargas, controles e impostos antigos, o campesinato ainda era muito tradicional no seu comportamento social e econômico. Com muita avidez tomaram empréstimos para comprar tanta terra quanto possível para seus filhos e com isso a dívida tornou-se um importante fator em seus cálculos. A classe trabalhadora nas cidades era um pequeno elemento e havia sido liberada de muitas restrições impostas pelas corporações medievais. Contudo, a França andava muito lentamente para a industrialização e muito do seu trabalho continuava penoso, sem maquinário ou tecnologia para ajudar. A França ainda era dividida em localidades, especialmente em termos de língua, mas agora havia um nacionalismo francês emergente que focava no orgulho nacional, no exército e nas relações estrangeiras.

II.4 – RESUMO POLÍTICO

Em abril de 1814, os exércitos da Sexta Coalizão reconduziram Louis XVIII ao trono da França, o irmão e herdeiro do executado Louis XVI. A constituição foi esboçada. A Carta Francesa de 1814 foi um texto constitucional outorgada por Louis XVIII, em forma de carta real, conforme exigido pelo Congresso de Viena antes de ser entronado. A Carta se apresenta como um texto de compromisso, talvez de perdão, preservando as várias aquisições da Revolução Francesa e do Império, enquanto restaurando a dinastia dos Bourbon. Ela considerava todos os franceses como iguais perante a lei, mas retinha substanciais prerrogativas ao Rei e à nobreza, limitando a votação àqueles que pagassem pelo menos 300 francos anuais em impostos diretos. O Rei era o supremo chefe do Estado, comandava as forças de terra e mar, declarava guerra, fazia tratados de paz, aliança e comércio, contratava todos os funcionários públicos e fazia as leis os regulamentos e decretos para a execução das leis e a segurança do Estado.
Louis foi relativamente liberal, escolhendo muitos gabinetes de centro. Morreu em setembro de 1824 sendo sucedido por seu irmão que reinou como Charles X. O novo rei adotou uma forma de governo mais conservadora do que Louis. Suas leis mais reacionárias incluíram o Ato Antissacrílego (1825-1830), uma lei contra a blasfêmia e o sacrilégio, revogada no início da “Monarquia de Julho” (assunto a ser abordado adiante), sob o Rei Louis Phillippe. Exasperado pela resistência e desrespeito popular, o Rei e seus ministros tentaram manipular a eleição geral de 1830 através de seus Decretos de Julho. Estes inflamaram a revolução nas ruas de Paris, Charles abdicou e, em 9 de agosto de 1830, a Câmara dos Deputados declarou Louis Phillippe de Orleans Rei dos Franceses, introduzindo a Monarquia de Julho.

II.5 – LOUIS XVIII, 1814 - 1824

a) Primeira Restauração (1814)
Talleyrand, o controvertido
Ministro de Napoleão

A entronização Louis XVIII, em 1814, teve o forte apoio do então ministro de relações externas de Napoleão, Talleyrand, no convencimento dos Aliados Vitoriosos da vantagem da restauração Bourbon. Os aliados haviam se dividido na escolha do candidato ao trono francês: a Grã-Bretanha favorecia os Bourbon; os austríacos consideravam a regência para o filho de Napoleão, Francisco Bonaparte; e os russos estavam abertos ao Duque de Orleans, Louis Phillippe ou Jean Baptiste Bernadotte, marechal de Napoleão e herdeiro presuntivo do trono sueco. A Napoleão haviam oferecido o trono em fevereiro de 1814 sob a condição de que a França retornasse às suas fronteiras de 1792, mas ele recusou. A viabilidade da restauração estava em dúvida, mas o atrativo da paz para o povo francês esgotado pela guerra e demonstrações de apoio aos Bourbon em Paris, Bordeaux, Marseille e Lyon, ajudaram a tranquilizar os aliados.
Louis, de acordo com a Declaração de Saint-Ouen, concedeu uma constituição escrita, a Carta de 1814, que garantia uma legislatura bicameral (duas assembleias, câmaras ou casas separadas), com uma Câmara de Pares (casa superior do Parlamento Francês) hereditária/designada e uma Câmara de Deputados (casa inferior do Parlamento) eleita, com papel consultivo (com exceção da definição dos impostos), visto que só o Rei tinha poder de propor ou sancionar leis e nomear ou revogar ministros. O direito a voto era limitado a homens com consideráveis propriedades e somente 1% do povo podia votar. Muitas das reformas legais, administrativas e econômicas do período revolucionário foram deixadas intactas; o Código Napoleônico (ainda hoje o Código Civil Francês) que garantia igualdade legal e liberdades civis, os bens nacionais (propriedades confiscadas durante a Revolução Francesa, da Igreja Católica, da Monarquia, dos emigrados e suspeitos contrarrevolucionários), dos camponeses e o novo sistema de divisão do país em Departamentos, não foram desfeitos pelo novo Rei. As relações entre a Igreja e o Estado permaneceram reguladas pelo Pacto de 1801, acordo firmado entre Napoleão Bonaparte e o Papa Pio VII, buscando reconciliação entre revolucionários e católicos. Contudo, embora o fato de que a Carta foi uma condição da restauração, o preâmbulo a declarava uma “concessão e garantia dada pelo livre exercício de nossa real autoridade”.
Após uma excitação sentimental inicial, atos de Louis pretendendo reverter os resultados da Revolução Francesa logo lhe criaram falta de apoio entre a maioria sem direito a voto. Atos simbólicos como a substituição da bandeira tricolor (vermelha, azul e branca, revolucionária) pela bandeira branca, o título de Louis como “XVIII” (como sucessor de Louis XVII que nunca reinou) e como “Rei da França” ao invés de “Rei dos Franceses”, bem como o reconhecimento, pela monarquia, dos aniversários das mortes de Louis XVI e Marie Antoinette foram significativos. Uma fonte ainda mais tangível de antagonismo, foi a pressão aplicada aos possuidores dos bens nacionais pela Igreja Católica e as tentativas dos emigrados que retornavam para tomarem suas terras anteriores. Outros grupos com sentimentos contra Louis incluíam o exército, os não católicos e trabalhadores atingidos por uma queda pós-guerra e importações inglesas.

b) Os Cem Dias
Waterloo, a derradeira batalha de Napoleão

Os emissários de Napoleão o informavam desse crescente desgosto e, em 20 de março de 1815 ele evadiu-se da Ilha de Elba retornando a Paris. Em seu caminho de volta, a maioria das tropas enviadas para detê-lo, inclusive que eram nominalmente realistas, sentiram-se mais inclinadas a juntar-se ao anterior Imperador. Louis fugiu de Paris para Ghent, na região flamenga da Bélgica, em 19 de março.
Napoleão reinou por cem dias, foi derrotado na Batalha de Waterloo, enviado novamente ao exílio, desta feita para a Ilha de Santa Helena, no meio do Oceano Atlântico e Louis retornou ao trono francês. Durante sua ausência uma pequena revolta, na tradicionalmente pró-realista Vendée, foi abafada, além de outros pequenos atos favorecendo a restauração, embora a popularidade de Napoleão começasse a ceder.


[1]A “Revolução Francesa de 1830”, também conhecida como a “Revolução de Julho”, “Segunda Revolução Francesa” ou “Três Gloriosos” (dias), foi a segunda Revolução Francesa após a primeira em 1789, que conduziu à queda do rei Charles X, o monarca Bourbon francês, e à ascensão de seu primo Louis Philippe, Duque de Orléans. Tal episódio será amplamente coberto mais adiante.

[2]O pouco mencionado na história, Louis XVII, nascido Louis Charles, Duque da Normandia, em 27 de março de 1785, era o filho mais moço de Louis XVI e da rainha Marie Antoinette, decapitados durante a Revolução Francesa de 1789. Seu irmão mais velho, Louis Joseph, Delfin (provável herdeiro) da França, morreu em junho de 1789, pouco mais de um mês antes da Revolução. Com a morte de seu irmão, Louis Charles tornou-se o novo Delfin, um título que manteria até 1791, quando a nova constituição deu ao provável herdeiro o título de Príncipe Real. Com a execução de seu pai, em janeiro de 1793, aos olhos da realeza ele automaticamente o sucedeu como rei da França, Louis XVII. Como a França era então uma república e tendo Louis Charles morrido de tuberculose na prisão em 1795, na realidade ele nunca governou.

[3]O “Antigo Regime”, também conhecido como o “Velho Regime”, foi o sistema político e social do Reino da França desde o final da Idade Média (cerca de 1500) até 1789, com a Revolução Francesa, que aboliu o sistema feudal da nobreza francesa e da monarquia hereditária.

[4] O iluminismo ou Idade do Iluminismo ou ainda Idade da Razão, foi um movimento intelectual e filosófico ocorrido na Europa, principalmente Europa Ocidental, nos séculos XVII e XVIII, com influências e efeitos globais. O iluminismo incluía um conjunto de ideias centradas no valor da felicidade humana, na busca do conhecimento obtido através da razão e da evidência dos sentidos e ideais como a lei natural, liberdade, progresso, tolerância, fraternidade, governo constitucional e separação da Igreja e Estado.





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