Beowulf

Homenagem ao lendário herói ancestral dos ingleses que deu título a um dos considerados "Cem Maiores Livros do Mundo" e tido como o mais antigo escrito em "Old English".

segunda-feira, 13 de maio de 2024

A CONTURBADA FRANÇA PÓS-REVOLUÇÃO (Parte 1)

 

I - INTRODUÇÃO

A França do final do século XVIII e de todo o século XIX foi um país sujeito a muitas, complexas e profundas transformações políticas e sociais. Entretanto, o próprio evento da Revolução Francesa de 1789 e o período que imediatamente lhe seguiu, início do século XIX, sob Napoleão, têm sido universal e intensamente narrados e discutidos sob todas as formas, de maneira a torná-los sobejamente conhecidos. A época que sucedeu à queda e prisão definitiva de Napoleão Bonaparte, porém, foi extremamente conturbada e de difícil entendimento, creio eu, até mesmo para os franceses, fato que constatei pessoalmente quando morando e trabalhando naquele país por curtos seis meses. Isto, sem considerar a relativamente menor exploração literária por parte de historiadores e escritores da época e posteriores, principalmente se considerarmos a enorme quantidade de personagens históricos envolvidos, entre reis, políticos e escritores que participaram desse conturbado século XIX para a França e Europa de uma maneira geral. Esta a razão que me levou a realizar a presente pesquisa, com o que pretendo aumentar o meu próprio conhecimento sobre tão importante assunto, além de contribuir para a cultura geral do meus leitores, se atingir meu objetivo.
O longo século XIX, após Napoleão Bonaparte passou, numa resumida visão, pelos seguintes importantes eventos: a “Restauração Bourbon” (1814/1815 – 1830); a “Monarquia de Julho” (1830 – 1848); a “Segunda República” (1848 – 1852); o “Segundo Império” (1852 – 1870); a “Terceira República” (1870 – 1940), passando por uma “Longa Depressão” (1873 – 1890) e a famosa “Belle Époque” francesa (1871 – 1914). Cobriremos com detalhe cada um desses eventos.

II – A RESTAURAÇÃO BOURBON

A “Restauração Bourbon” foi o período da história francesa durante o qual a Casa dos Bourbon, na figura de Louis XVIII - a mesma de Louis XVI, durante o qual se deu a Revolução Francesa -, retornou ao poder após a primeira queda de Napoleão em 3 de maio de 1814. Brevemente interrompida pelos “Cem Dias” (período entre o retorno de Napoleão da Ilha de Elba a Paris, em 20 de março de 1815, e a Segunda Restauração de Louis XVIII em 8 de julho de 1815 – 110 dias) em 1815, a Restauração durou até a Revolução de 26 Julho de 1830[1]. Louis XVIII[2] e Charles X, irmãos de Louis XVI, o rei executado pela Revolução de 1789, sucessivamente assumiram o trono e instituíram um governo conservador que pretendia restaurar as propriedades, senão todas as instituições, do Antigo Regime[3]. Os apoiadores exilados da monarquia retornaram à França, mas não conseguiram reverter a maioria das mudanças feitas pela Revolução Francesa. Então exaurida por décadas de guerras, a nação experimentou um período de paz interna e externa, de prosperidade econômica estável e os primórdios da industrialização.

II.1 - ANTECEDENTES

Napoleão Bonaparte, feito Imperador
por uma revolução para destituir um Rei
Seguindo à Revolução Francesa (1789-1799), Napoleão Bonaparte tornou-se o governante da França, como Primeiro Cônsul, inicialmente e, posteriormente, como Imperador. Após anos de expansão do seu Império Francês por sucessivas vitórias militares, uma coalizão de potências europeias derrotou-o na “Batalha da Sexta Coalização”. Áustria, Prússia, Rússia, Espanha, Reino Unido, Portugal, Suécia, Sardenha e alguns Estados Germânicos derrotaram a França, enviando Napoleão ao exílio na Ilha de Elba, encerrando o “Primeiro Império” em 1814 e restaurando a monarquia aos irmãos de Louis XVI. A Restauração dos Bourbon durou de 6 de abril de 1814 até os levantes populares da Revolução de Julho de 1830. Rigorosamente, houve um interlúdio na primavera de 1815, os “Cem Dias”, quando o retorno de Napoleão forçou os Bourbon a fugirem da França. Quando Napoleão foi novamente derrotado pela “Sétima Coalizão” (Batalha de Waterloo, quando Napoleão foi definitivamente derrotado), eles retornaram ao poder em julho de 1815. Com a paz do Congresso de Viena, os Bourbon foram tratados com polidez pelas monarquias vitoriosas, mas tiveram que devolver praticamente todos os ganhos territoriais feitos pelos revolucionários e França Napoleônica desde 1789.

II.2 – MONARQUIA CONSTITUCIONAL

Diferentemente do absolutista Antigo Regime, o regime da Restauração Bourbon foi uma monarquia constitucional (também conhecida como “monarquia limitada”, “monarquia parlamentar” ou “monarquia democrática”), uma forma de monarquia em que o rei exerce sua autoridade de acordo com uma constituição e não pode tomar decisões isoladamente, ou seja, com limites em seu poder. O novo rei, Louis XVIII, aceitou a grande maioria das reformas instituídas entre 1792 e 1814, tendo como sua política básica, a continuidade. Não tentou recuperar terras e propriedades tomadas dos exilados reais perseguindo, de forma pacífica, os principais objetivos da política externa de Napoleão, como por exemplo, a limitação da influência austríaca. Contrariou Napoleão no que se referia à Espanha e ao Império Otomano, restaurando a amizade que prevaleceu até 1792. 
Louis XVIII, primeiro Rei da
Restauração Bourbon
Politicamente, o período foi caracterizado por uma reação conservadora aguda e por consequentes perturbações e agitações civis menores, mas persistentes. Por outro lado, o sistema governante permaneceu relativamente estável até o subsequente reinado de Charles X, além de assistir o restabelecimento da Igreja Católica como o maior poder na política francesa. Durante a Restauração Bourbon, a França experimentou um período de prosperidade econômica estável e iniciou as preliminares da industrialização.

II.3 – ALTERAÇÕES PERMANENTES NA SOCIEDADE FRANCESA

As eras da Revolução Francesa e de Napoleão trouxeram uma série de mudanças importantes para a França, que a Restauração Bourbon não reverteu. A França era agora altamente centralizada, com todas as decisões importantes tomadas em Paris. A geografia política foi completamente reorganizada e tornada uniforme, com a nação dividida em mais de 80 departamentos que permanecem até hoje (atualmente 101). Cada departamento tinha uma estrutura administrativa idêntica rigidamente controlada por um prefeito indicado por Paris. O emaranhado da sobreposição de jurisdições legais do velho regime foi totalmente abolido e havia agora um código legal padronizado administrado por juízes indicados por Paris e apoiados pela polícia sob controle nacional.
Os governos revolucionários haviam confiscado todas as terras e prédios da Igreja Católica, vendendo-os a inumeráveis compradores da classe média sendo politicamente impossível restaurá-los. O bispo ainda governava sua diocese (ou bispado, distrito eclesiástico sob a jurisdição de um bispo) alinhada com os novos limites do departamento e se comunicava com o Papa através do governo de Paris. Bispos, padres, freiras e outros religiosos recebiam salários do Estado. Todos os antigos ritos e cerimônias religiosas foram retidas e o governo manteve os prédios religiosos. A Igreja teve permissão para operar seus seminários, bem como a maioria de suas escolas locais, embora esta tenha se tornado uma questão política central no século XX. Os bispos tinham muito menos poder que antes e não tinham voz política. Contudo, a Igreja reinventou-se com uma nova ênfase na piedade pessoal que lhe proporcionou uma maior influência na psicologia do fiel. A educação pública foi centralizada, com o “Grande Mestre da Universidade da França” controlando cada elemento do sistema educacional a partir de Paris. Novas universidades técnicas foram abertas em Paris que até hoje possuem um papel crítico no treinamento da elite.
O conservadorismo foi fortemente dividido, entre a velha aristocracia que retornou e as novas elites surgidas com Napoleão, após 1796. A velha aristocracia queria muito recuperar suas terras, mas não sentiu lealdade no novo regime. As novas elites, a “nobreza do império”, ridicularizava o grupo antigo como remanescentes fora de moda de um regime desacreditado que havia conduzido a nação ao desastre. Os dois grupos compartilhavam do temor da desordem social, mas o nível de desconfiança, bem como as diferenças culturais foram grandes demais e a monarquia foi muito inconsistente nas suas políticas para tornar possível uma cooperação.
A velha aristocracia que retornava recuperou muito da terra que havia possuído diretamente. Contudo, eles perderam todos os direitos senhoriais das terras agricultáveis não recuperadas e os camponeses não se encontravam mais sob o seu controle. A aristocracia pré-revolucionária havia flertado com as ideias do Iluminismo[4] e Racionalismo. Agora, a aristocracia era muito mais conservadora e apoiadora da Igreja. Para os melhores empregos, a meritocracia era a nova política e os aristocratas tinham que competir diretamente com os negócios crescentes e as classes profissionais.
O sentimento anticlerical público tornou-se mais forte do que nunca, mas era agora baseado em certos elementos da classe média e mesmo dos camponeses. As grandes massas da população francesa eram formadas por camponeses do interior ou trabalhadores empobrecidos das cidades. Eles ganharam novos direitos e um novo sentido de possibilidades. Embora aliviados de muitas das antigas cargas, controles e impostos antigos, o campesinato ainda era muito tradicional no seu comportamento social e econômico. Com muita avidez tomaram empréstimos para comprar tanta terra quanto possível para seus filhos e com isso a dívida tornou-se um importante fator em seus cálculos. A classe trabalhadora nas cidades era um pequeno elemento e havia sido liberada de muitas restrições impostas pelas corporações medievais. Contudo, a França andava muito lentamente para a industrialização e muito do seu trabalho continuava penoso, sem maquinário ou tecnologia para ajudar. A França ainda era dividida em localidades, especialmente em termos de língua, mas agora havia um nacionalismo francês emergente que focava no orgulho nacional, no exército e nas relações estrangeiras.

II.4 – RESUMO POLÍTICO

Em abril de 1814, os exércitos da Sexta Coalizão reconduziram Louis XVIII ao trono da França, o irmão e herdeiro do executado Louis XVI. A constituição foi esboçada. A Carta Francesa de 1814 foi um texto constitucional outorgada por Louis XVIII, em forma de carta real, conforme exigido pelo Congresso de Viena antes de ser entronado. A Carta se apresenta como um texto de compromisso, talvez de perdão, preservando as várias aquisições da Revolução Francesa e do Império, enquanto restaurando a dinastia dos Bourbon. Ela considerava todos os franceses como iguais perante a lei, mas retinha substanciais prerrogativas ao Rei e à nobreza, limitando a votação àqueles que pagassem pelo menos 300 francos anuais em impostos diretos. O Rei era o supremo chefe do Estado, comandava as forças de terra e mar, declarava guerra, fazia tratados de paz, aliança e comércio, contratava todos os funcionários públicos e fazia as leis os regulamentos e decretos para a execução das leis e a segurança do Estado.
Louis foi relativamente liberal, escolhendo muitos gabinetes de centro. Morreu em setembro de 1824 sendo sucedido por seu irmão que reinou como Charles X. O novo rei adotou uma forma de governo mais conservadora do que Louis. Suas leis mais reacionárias incluíram o Ato Antissacrílego (1825-1830), uma lei contra a blasfêmia e o sacrilégio, revogada no início da “Monarquia de Julho” (assunto a ser abordado adiante), sob o Rei Louis Phillippe. Exasperado pela resistência e desrespeito popular, o Rei e seus ministros tentaram manipular a eleição geral de 1830 através de seus Decretos de Julho. Estes inflamaram a revolução nas ruas de Paris, Charles abdicou e, em 9 de agosto de 1830, a Câmara dos Deputados declarou Louis Phillippe de Orleans Rei dos Franceses, introduzindo a Monarquia de Julho.

II.5 – LOUIS XVIII, 1814 - 1824

a) Primeira Restauração (1814)
Talleyrand, o controvertido
Ministro de Napoleão

A entronização Louis XVIII, em 1814, teve o forte apoio do então ministro de relações externas de Napoleão, Talleyrand, no convencimento dos Aliados Vitoriosos da vantagem da restauração Bourbon. Os aliados haviam se dividido na escolha do candidato ao trono francês: a Grã-Bretanha favorecia os Bourbon; os austríacos consideravam a regência para o filho de Napoleão, Francisco Bonaparte; e os russos estavam abertos ao Duque de Orleans, Louis Phillippe ou Jean Baptiste Bernadotte, marechal de Napoleão e herdeiro presuntivo do trono sueco. A Napoleão haviam oferecido o trono em fevereiro de 1814 sob a condição de que a França retornasse às suas fronteiras de 1792, mas ele recusou. A viabilidade da restauração estava em dúvida, mas o atrativo da paz para o povo francês esgotado pela guerra e demonstrações de apoio aos Bourbon em Paris, Bordeaux, Marseille e Lyon, ajudaram a tranquilizar os aliados.
Louis, de acordo com a Declaração de Saint-Ouen, concedeu uma constituição escrita, a Carta de 1814, que garantia uma legislatura bicameral (duas assembleias, câmaras ou casas separadas), com uma Câmara de Pares (casa superior do Parlamento Francês) hereditária/designada e uma Câmara de Deputados (casa inferior do Parlamento) eleita, com papel consultivo (com exceção da definição dos impostos), visto que só o Rei tinha poder de propor ou sancionar leis e nomear ou revogar ministros. O direito a voto era limitado a homens com consideráveis propriedades e somente 1% do povo podia votar. Muitas das reformas legais, administrativas e econômicas do período revolucionário foram deixadas intactas; o Código Napoleônico (ainda hoje o Código Civil Francês) que garantia igualdade legal e liberdades civis, os bens nacionais (propriedades confiscadas durante a Revolução Francesa, da Igreja Católica, da Monarquia, dos emigrados e suspeitos contrarrevolucionários), dos camponeses e o novo sistema de divisão do país em Departamentos, não foram desfeitos pelo novo Rei. As relações entre a Igreja e o Estado permaneceram reguladas pelo Pacto de 1801, acordo firmado entre Napoleão Bonaparte e o Papa Pio VII, buscando reconciliação entre revolucionários e católicos. Contudo, embora o fato de que a Carta foi uma condição da restauração, o preâmbulo a declarava uma “concessão e garantia dada pelo livre exercício de nossa real autoridade”.
Após uma excitação sentimental inicial, atos de Louis pretendendo reverter os resultados da Revolução Francesa logo lhe criaram falta de apoio entre a maioria sem direito a voto. Atos simbólicos como a substituição da bandeira tricolor (vermelha, azul e branca, revolucionária) pela bandeira branca, o título de Louis como “XVIII” (como sucessor de Louis XVII que nunca reinou) e como “Rei da França” ao invés de “Rei dos Franceses”, bem como o reconhecimento, pela monarquia, dos aniversários das mortes de Louis XVI e Marie Antoinette foram significativos. Uma fonte ainda mais tangível de antagonismo, foi a pressão aplicada aos possuidores dos bens nacionais pela Igreja Católica e as tentativas dos emigrados que retornavam para tomarem suas terras anteriores. Outros grupos com sentimentos contra Louis incluíam o exército, os não católicos e trabalhadores atingidos por uma queda pós-guerra e importações inglesas.

b) Os Cem Dias
Waterloo, a derradeira batalha de Napoleão

Os emissários de Napoleão o informavam desse crescente desgosto e, em 20 de março de 1815 ele evadiu-se da Ilha de Elba retornando a Paris. Em seu caminho de volta, a maioria das tropas enviadas para detê-lo, inclusive que eram nominalmente realistas, sentiram-se mais inclinadas a juntar-se ao anterior Imperador. Louis fugiu de Paris para Ghent, na região flamenga da Bélgica, em 19 de março.
Napoleão reinou por cem dias, foi derrotado na Batalha de Waterloo, enviado novamente ao exílio, desta feita para a Ilha de Santa Helena, no meio do Oceano Atlântico e Louis retornou ao trono francês. Durante sua ausência uma pequena revolta, na tradicionalmente pró-realista Vendée, foi abafada, além de outros pequenos atos favorecendo a restauração, embora a popularidade de Napoleão começasse a ceder.


[1]A “Revolução Francesa de 1830”, também conhecida como a “Revolução de Julho”, “Segunda Revolução Francesa” ou “Três Gloriosos” (dias), foi a segunda Revolução Francesa após a primeira em 1789, que conduziu à queda do rei Charles X, o monarca Bourbon francês, e à ascensão de seu primo Louis Philippe, Duque de Orléans. Tal episódio será amplamente coberto mais adiante.

[2]O pouco mencionado na história, Louis XVII, nascido Louis Charles, Duque da Normandia, em 27 de março de 1785, era o filho mais moço de Louis XVI e da rainha Marie Antoinette, decapitados durante a Revolução Francesa de 1789. Seu irmão mais velho, Louis Joseph, Delfin (provável herdeiro) da França, morreu em junho de 1789, pouco mais de um mês antes da Revolução. Com a morte de seu irmão, Louis Charles tornou-se o novo Delfin, um título que manteria até 1791, quando a nova constituição deu ao provável herdeiro o título de Príncipe Real. Com a execução de seu pai, em janeiro de 1793, aos olhos da realeza ele automaticamente o sucedeu como rei da França, Louis XVII. Como a França era então uma república e tendo Louis Charles morrido de tuberculose na prisão em 1795, na realidade ele nunca governou.

[3]O “Antigo Regime”, também conhecido como o “Velho Regime”, foi o sistema político e social do Reino da França desde o final da Idade Média (cerca de 1500) até 1789, com a Revolução Francesa, que aboliu o sistema feudal da nobreza francesa e da monarquia hereditária.

[4] O iluminismo ou Idade do Iluminismo ou ainda Idade da Razão, foi um movimento intelectual e filosófico ocorrido na Europa, principalmente Europa Ocidental, nos séculos XVII e XVIII, com influências e efeitos globais. O iluminismo incluía um conjunto de ideias centradas no valor da felicidade humana, na busca do conhecimento obtido através da razão e da evidência dos sentidos e ideais como a lei natural, liberdade, progresso, tolerância, fraternidade, governo constitucional e separação da Igreja e Estado.





domingo, 8 de outubro de 2023

ANONIMO VENEZIANO

Eu havia publicado, anteriormente, algumas postagens sobre músicas na minha “tag” “Músicas Preferidas”, mas essa publicação estava bem complicada de ser feita, assim como acontecia com a “tag” “Livros Preferidos”, provavelmente devido à minha falta de perícia no tratamento dessas questões midiáticas. Em vista disso, resolvi republicar todas as postagens sobre músicas e livros anteriormente publicadas, com pequenas alterações, cada uma como uma nova postagem. Creio que assim procedendo, tornarei as matérias sobre músicas e livros mais acessíveis aos meus leitores. Vou iniciar com o “Anonimo Veneziano”.
Música é o meu ponto fraco!!! Ainda sou capaz de identificar, ao ouvir uma melodia, a época e situação da minha vida em que a escutei pela primeira vez ou fui por ela marcado. Qualquer pessoa sabe que é muito difícil dizer qual a sua melodia preferida, pois as músicas impressionam as pessoas de maneiras diversas; e essas várias sensações acabam tornando uma música preferida por tal razão, outra por qual motivo e assim sucessivamente, de forma que diferentes pessoas catalogam diferentes melodias como as suas preferidas.
Esta música, mais uma das minhas grandes favoritas, me traz lindas lembranças do ano tão distante de 1973, quando retornava da minha primeira viagem à Europa, em companhia da minha esposa Selene e da filha Cláudia, então única. Havíamos passado seis meses na Inglaterra, radicados em Londres, mas viajando por toda a Grã-Bretanha, e mais quatro meses na França, morando na pacata e histórica cidade de Brive-La-Gaillarde, mas também viajando bastante por toda a metade meridional do país, além da capital. Após meus trabalhos oficiais, tiramos quase um mês de férias para conhecer alguns países da Europa e acabamos o giro na cidade de Cannes, ao sul da França, no Mar Mediterrâneo. De lá embarcamos no “Augusto C” para retornar ao Brasil numa maravilhosa viagem de treze dias, cruzando boa parte do Mediterrâneo, atravessando o Estreito de Gibraltar, infletindo para o norte em busca da Lisboa antiga, onde permanecemos algum tempo para compras e então atravessando o Atlântico, rumo ao porto de Santos, São Paulo, nosso destino quase final, posto que iríamos para Porto Alegre.
Pois foi a bordo do “Augusto C” que assistimos à película “Anonimo Veneziano” (assim mesmo, sem acento, nome do filme em italiano), de cuja trilha sonora faz parte a maravilhosa música de que trata esta postagem. O filme fora inteiramente rodado na cidade italiana de Veneza, que havíamos conhecido pouco tempo atrás e que, em minha opinião, é uma cidade tão linda quanto nostálgica, por tudo quanto dela se conhece – retornei lá, uma vez, e ainda a achei mais triste do que na primeira vez. E eu, que já amava a cidade, apaixonei-me pela música e a trago agora, bem como ao filme, para compartilhar com os meus leitores. 
O cartaz de apresentação de
"Anonimo Veneziano"
O "Anonimo Veneziano" é um filme italiano, dramático, de 1970, vencedor de prêmios, escrito e dirigido pelo famoso ator italiano Enrico Maria Salerno, na sua estreia como diretor de cinema. O filme foi estrelado pelo ator americano Tony Musante e pela nossa atriz brasileira Florinda Bolkan.
O enredo do filme fala de Enrico, um oboísta do “Gran Teatro La Fenice”, de Veneza, que não conseguiu se tornar o grande maestro que desejava. Afetado por um câncer incurável, consegue um encontro nesta cidade, com sua ex-mulher, Valéria, com quem teve um filho, de quem está separado há alguns anos e que vive com outro homem em outra cidade, mas ocultando suas condições de saúde. Enrico e Valéria caminham e passeiam pelas ruas e canais de Veneza, lembrando os tempos felizes em que viviam juntos, mas também os maus momentos. Ela percebe que ainda o ama, mas quando ele, finalmente, confessa estar morrendo, Valéria percebe que já é tarde demais para voltar atrás e mudar o curso de suas vidas. No final do filme, quando o dia termina, os dois se despedem cientes de que não se encontrarão novamente. Enquanto ela se afasta, em lágrimas, da antiga igreja convertida em estúdio de gravações, Enrico dirige, com paixão, o ensaio de uma orquestra para um concerto de um autor “anônimo” (é esta a origem do título do filme), de origem veneziana, que se torna a trilha sonora do filme.
O filme recebeu os prêmios “David di Donatello” para melhor atriz, Florinda Bolkan, um “David Special” para o diretor Enrico Maria Salerno e o prêmio “Nastro d’Argento” para a melhor cinematografia a cores (Marcello Gatti) e a melhor trilha sonora (Stelvio Cipriani), além de três outras indicações. Saiu da Itália em 30 de setembro de 1970 e obteve enorme sucesso com o público, aparecendo como o quarto colocado da temporada e superando, em muito, o filme “Love Story”, do mesmo ano. 
O compositor Stelvio Cipriani
O filme é especialmente notável por sua romântica trilha sonora, composta por Stelvio Cipriani, cujo tema principal ficou conhecida no Brasil como “Anônimo Veneziano” e, em francês, como “Venise Va Mourir”. Tal melodia foi gravada por vários intérpretes de várias nacionalidades, vocal e instrumental, com enorme sucesso. Em 1970, Frida Boccara a gravou em francês (com letra de Eddy Marnay) e a apresentou mais tarde, no Festival de Filmes de Cannes. Também em 1970, Tony Renis a gravou como “Anonimo Veneziano”, em inglês e italiano; em 1971, ele a gravou como “Venise Va Mourir”, na versão francesa. Posteriormente outras gravações foram realizadas: Sergio Denis (1971), Fred Bongusto (1971), Ornella Vanoni (1971) e Nana Mouskouri, em 1973, como “To Be the One You Love”. Como música instrumental foi gravada por Paul Mauriat, Franck Pourcel, Fausto Papetti e Julio Armando, apenas para citar as orquestras mais conhecidas.
Quanto à trilha sonora, ainda, o filme apresenta uma particularidade muito interessante. O concerto que o personagem principal, Enrico, ensaia ao final do filme, é apresentado como “Concerto em Dó Menor para Oboé, Cordas e Baixo Contínuo”, de Benedetto Marcello. Na realidade, trata-se do “Concerto em Ré Menor para Oboé, Cordas e Baixo Contínuo”, em três movimentos, de Alessandro Marcello, irmão mais velho e menos popular que Benedetto. No caso do ensaio, trata-se do segundo dos três movimentos, o Adágio. Tornado famoso graças ao filme, neste ele é transcrito e conduzido por Giorgio Gaslini.
Como nunca gostei de compositores anônimos, algumas palavras sobre o autor da trilha sonora do “Anônimo Veneziano”. Stelvio Cipriani é um compositor italiano nascido em Roma, em 20 de agosto de 1937, muito conhecido por suas composições para trilhas sonoras. Sem vir de família de músicos, sempre foi fascinado pelo órgão de sua igreja, onde recebeu as primeiras lições de música. Estudou no Conservatório Santa Cecília a partir dos 14 anos de idade e tocando em bandas de cruzeiros, conheceu Dave Brubeck. Acompanhou Rita Pavone ao piano. Compôs várias trilhas sonoras para filmes, principalmente para “westerns”, no início.
Li uma vez, em algum lugar, que se os compositores clássicos fossem vivos hoje, comporiam música para trilhas sonoras de filmes. Concordo plenamente com a ideia, visto que algumas das músicas mais lindas que conheço, foram compostas para trilhas sonoras; os exemplos são incontáveis. Gostaria de acrescentar também que, fazendo um curso de música, há muitos anos atrás, na cadeira em que se aprendia a reconhecer os instrumentos musicais de uma grande orquestra, o professor dizia, sobre o oboé, que era o instrumento mais triste e melancólico de uma orquestra. Considerando o local onde o filme foi rodado e o tema principal do filme, eu diria que a trilha sonora nunca foi tão feliz ao ser composta e escolhida para fazer parte desta película.
Para deleite dos leitores, disponibilizarei os “links” para o tema principal do “Anônimo Veneziano” em várias versões. Por uma questão de justiça, a primeira versão é um “áudio” da trilha sonora original, bem curta; nesta versão, o leitor poderá apreciar, com detalhe, toda a melancolia do oboé. Infelizmente, a minha fonte não declarou o intérprete da gravação, mas certamente, trata-se da orquestra que gravou a trilha sonora, sob a regência do seu compositor, Stelvio Cipriani. A segunda versão é um “clip” da trilha sonora original, mais elaborada e longa, com algumas fotos de Veneza, para colocar o leitor num ambiente mais adequado. Para o intérprete, infelizmente, vale a mesma observação colocada anteriormente.
A seguir uma versão interpretada por Tony Renis. Presenteamos nossos leitores com a letra da música, em italiano, com versão para o português, abaixo, para que possam acompanhar com o cantor.
Finalmente, uma versão orquestrada, interpretada pela orquestra de Paul Mauriat, uma das minhas preferidas.
E para aqueles com gosto mais refinado, apresentamos o “Concerto em Ré Menor para Oboé, Cordas e Baixo Contínuo”, em três movimentos, completo, de Alessandro Marcello, interpretado pela Orquestra de Câmera do Scala de Milão, com Fabien Thouand executando o som tristonho do oboé.


ANONIMO VENEZIANO                                VENEZIANO ANÔNIMO

Cuore, cosa fai                                                    
Coração, o que faz 
Che tutto solo te ne stai.                                     Q
ue fica tão sozinho.
Il sole è alto e splende già                                   
O sol está alto e já brilha  
Sulla città.                                                           
Sobre a cidade.

Al buio tu non guarirai,                                       
No escuro você não vai curar
Non stare lì, dai retta a me.                                 
Não fique ali, dê-me atenção.
Di là dai vetri forse c'è                                        
Além dos vidros talvez tem
Una per te, per te.                                                
Uma para ti, para ti.

Almeno guarda giù                                              
Ao menos olha em baixo
E tra la gente che vedrai                                      
E entre a gente que verá
C'è sempre una, una che                                      
Tem sempre uma, uma que
È come te.                                                            
É como tu.

Un viso anonimo che sà                                       
Um rosto anônimo que sabe
L'ingratitudine cos'è,                                            
A ingratidão o que é,
E una parola troverà                                             
E uma palavra encontrará
Anche per te, per te.                                             
Também para ti, para ti.

E allora te ne vai,                                                  
E então você vai,
Non hai perduto niente ancora.                            
Não perdeu nada ainda.
A un'altra vita, un altro amore                              
Para uma outra vida, um outro amor
Non dare mai.                                                       
Nunca dar.

Il sole alto splende già                                          
O sol alto já brilha
Sul viso anonimo di chi                                        
Sobre o rosto anônimo de quem
Potrà rubarti un altro sì,                                        
Poderá te roubar um outro sim,
Un altro sì.                                                            
Um outro sim.

Il mondo é lì.                                                        
O mundo é ali
È lì.                                                                       
É ali.
La ra la ra la ra                                                     
La ra la ra la ra
La ra la ra la ra....                                                 
La ra la ra la ra...





terça-feira, 26 de setembro de 2023

A CHINA ANTIGA (PARTE 2/2)

IV.2 – O PERÍODO DA PRIMAVERA E OUTONO & OS ESTADOS GUERREIROS

Durante o Período da Primavera e Outono (cerca de 772-476 AC), assim chamado por causa dos Anais da Primavera e Outono, a crônica oficial do estado à época e uma fonte antiga mencionando o General Sun Tzu, o governo Zhou tornou-se descentralizado em seu movimento para a nova capital em Luoyang (cidade capital de muitas dinastias antigas chinesas, frequentemente trocada com Chang’an, em geral quando havia uma troca de dinastia, localizada na província Henan, parte oriental da planície central da China), marcando o fim do período ‘Zhou Ocidental’ e o início do ‘Zhou Oriental. Foi o período mais notável pelos avanços em filosofia, poesia e as artes, além de assistir à ascensão dos pensamentos Confucionista, Taoísta e Mohista.
Ao mesmo tempo, contudo, os diferentes estados estavam se separando do governo central em Luoyang e proclamando-se soberanos, causa principal do chamado Período dos Estados Guerreiros (cerca de 481-221 AC), em que sete estados lutaram entre si pelo controle. Os sete estados eram Chu, Han, Qi, Qin, Wei, Yan e Zhao e consideravam-se soberanos sem que qualquer um deles tenha se sentido confiante para reivindicar o Mandato do Céu, ainda em poder da Dinastia Zhou de Luoyang. 
Os Estados Guerreiros e a conquista de Qin em 250 AC
Os sete estados usavam as mesmas táticas e observavam as mesmas regras de conduta em batalha, sem que qualquer um deles ganhasse vantagem sobre os demais. Essa situação foi explorada pelo filósofo pacifista Mo Ti, um habilidoso engenheiro que fez sua missão fornecer a cada estado o mesmo conhecimento de fortificações e escadas de sítio na esperança de neutralizar a vantagem de qualquer dos estados e assim acabar com a guerra. Seus esforços, contudo, não tiveram sucesso e entre 262 e 260 AC o estado de Qin ganhou supremacia sobre Zhao, derrotando-o finalmente na Batalha de Changping.
Um político de Qin, chamado Shang Yang, crente da eficiência e da lei, reformulou o entendimento Qin da arte da guerra para focar na vitória a qualquer custo. Se a Sun-Tzu ou a Shang Yang deve ser creditada a reforma do protocolo e estratégia militar na China, vai depender da aceitação da historicidade de Sun-Tzu. Se ele não existiu, como muitos dizem, é muito provável que Shan Yang leve o mérito pelo famoso trabalho “A Arte da Guerra”[1], que hoje traz o nome de Sun-Tzu como seu autor.
Antes dessas reformas, a arte da guerra chinesa era considerada um jogo de habilidade da nobreza, com bem estabelecidas regras ditadas pela cortesia e entendida vontade do céu. Um não atacava o fraco ou despreparado e esperava-se que o outro protelasse a ação até que o oponente tivesse mobilizado e formado fileiras no campo. Shang advogava guerra total em busca da vitória e aconselhava tomar as forças do inimigo por todos os meios que estivessem à disposição. Os princípios de Shang eram conhecidos em Qin e deles foi feito uso em Changping (onde mais de 450.000 soldados Zhao foram executados após a batalha), dando a Qin a vantagem pela qual eles estavam esperando.
Contudo, não fizeram efetivo uso adicional dessas táticas até a ascensão de Ying Zheng, rei de Qin. Utilizando as diretivas de Shang e com um exército de considerável tamanho, usando armas de ferro e conduzindo carros, Ying Zheng emergiu do conflito supremo dos Estados Guerreiros em 221 AC, subjugando e unificando os outros seis estados sob o seu governo, proclamando-se Shi Huangdi, ‘Primeiro Imperador’ da China. 
Shi Huangdi, o primeiro Imperador da China


IV.3 – A DINASTIA QIN

Assim, Shi Huangdi estabeleceu a Dinastia Qin (221-296 AC), iniciando na China o período conhecido como Era Imperial (221 AC – 1912 DC), quando as dinastias governaram a terra. Ele ordenou a destruição das fortificações com muralhas que haviam separado os diferentes estados e determinou a construção de uma grande muralha ao longo da fronteira norte do seu reino. Embora hoje permaneça pouco da muralha original de Shi Huangdi, a ‘Grande Muralha da China’ começou sob o seu governo.
A “Grande Muralha da China”, a mais longa fortificação de defesa do mundo, se estendia por mais de 5.000 km, através das montanhas e planícies, desde as fronteiras com a Coreia no leste, até o terrível Deserto Ordos no oeste. Tratava-se de um enorme empreendimento logístico, embora tenha incorporado, ao longo de sua extensão, vários trechos de muralhas anteriormente construídas pelos reinos chineses separados, para defender suas fronteiras do norte no quarto e terceiro séculos AC, principalmente contra os mongóis.
Shi Huangdi também reforçou a infraestrutura através da construção de estradas que ajudaram a aumentar o comércio com a facilidade das viagens. Cinco estradas tronco partiam da capital imperial em Xianyang, cada uma delas equipada com forças policiais e estações de correio. A maioria dessas estradas eram construções de terra compactada com largura de 15 m. A mais longa delas corria para sudoeste cerca de 7.500 km até a região fronteira de Yunnan. Tão acidentada era a região interior que trechos da estrada tiveram que ser construídos a partir de penhascos verticais através de galerias de madeira proeminentes. 
A fantástica "Grande Muralha da China"
Shi Huangdi também expandiu os limites do seu império, construiu o Grande Canal no sul, redistribuiu terras e, no início, foi um governante legítimo e justo.
O Grande Canal, Patrimônio Histórico Mundial da Unesco, é o mais longo canal ou rio artificial do mundo, constituído por uma série de hidrovias do norte e leste da China, com cerca de 1.800 km de comprimento. O Grande Canal representou um importante papel na unificação do norte com o sul da China, conectando o Rio Amarelo, ao norte, com o rio Yangtze, ao sul, com isso tornando muito mais fácil o transporte de grãos do sul aos centros de poder político e militar do norte do país.
Embora tendo feito grandes avanços na construção de projetos e campanhas militares, seu governo tornou-se crescentemente caracterizado por uma pesada mão na política doméstica. Reivindicando o Mandato do Céu, ele suprimiu todas as filosofias com exceção do Legalismo[2] que tinha sido desenvolvido por Shang Yang e, atendendo o conselho de seu principal conselheiro Li Siu, ele ordenou a destruição de todos os livros de história e filosofia que não correspondessem ao Legalismo, sua linha familiar, o estado de Qin ou ele próprio.
Como os livros fossem então escritos em tiras de bambu amarrados com pinos giratórios formando volumes pesados, os estudiosos que procuraram fugir da ordem tiveram que enfrentar muitas dificuldades. Um grande número deles foi descoberto e diz a tradição que muitos deles foram enviados para trabalhar na Grande Muralha, com quatrocentos e sessenta condenados à morte. Contudo, alguns dos literatos memorizaram os trabalhos completos de Confúcio e os transmitiram oralmente para outras memórias.
Essa ação, juntamente com a supressão das liberdades gerais, inclusive a liberdade de expressão, tornaram Shi Huangdi progressivamente mais impopular. A antiga adoração do ancestrais e a terra dos mortos começaram a interessar mais o imperador do que o seu reino dos vivos e Shi Huangdi tornou-se crescentemente absorvido no que consistiria esse outro mundo e como ele poderia evitar a sua viagem para lá. Parece ter desenvolvido uma obsessão com a morte, tornando-se crescentemente paranoico com relação à sua segurança pessoal e buscando ardentemente a imortalidade. 
Vista panorâmica do fabuloso Exército de Terracota
Seu desejo de garantir a si uma vida após a morte compatível com a sua vida presente, levou-o a autorizar a construção de um palácio para a sua tumba e um exército de mais de 8.000 guerreiros de terracota criados para servi-lo na eternidade. Este exército de cerâmica, enterrado junto com ele, tembém incluiu carros de terracota, cavalaria, um comandante em chefe, bem como pássaros e animais variados. Diz-se que morreu em 210 AC enquanto numa busca por um elixir da imortalidade e Li Siu, esperando ganhar o controle do governo, manteve sua morte secreta até que pudesse, mais tarde, alterar o seu testamento para nomear seu dócil filho, Hu-Hai, como herdeiro.
Tal plano provou-se, contudo, insustentável já que o jovem príncipe mostrou-se muito instável, executando muitos e iniciando uma ampla rebelião por toda a região. Logo após a morte de Shi Huangdi, a dinastia Qin rapidamente entrou em colapso pela intriga e ineptitude de gente como Hu Hai, Li Siu e outro conselheiro, Zhao Gao, e a Dinastia Han (202 AC-220 DC) iniciou com o acesso de Liu Bang.

IV.4 – A DISPUTA CHU-HAN

Com a queda da Dinastia Qin a China mergulhou no caos conhecido como a “Disputa Chu-Han (206-202 AC). Dois generais emegiram entre as forças que se rebelaram contra o Qin: Liu-Bang de Han (viveu cerca de 256 a 195 AC) e o general Xiang-Yu de Chu (viveu cerca de 232 a 202 AC), que lutaram pelo controle do governo. Xiang-Yu, que tinha provado ser o mais formidável oponente de Qin, concedeu a Liu-Bang o título de ‘Rei do Han’, em reconhecimento à decisiva derrota que causou às forças de Qin em sua capital de Xianyang. 
Mapa da disputa Chu-Han pelo poder na China

Os dois antes aliados, rapidamente tornaram-se antagonistas na luta pelo poder, até que Xiang-Yu negociou o Tratado do Canal Hong, que trouxe uma paz temporária. Xiang-Yu sugeriu dividir a China sob o comando de Chu, no leste e de Han, no oeste, mas Liu-Bang queria uma China unida sob o comando de Han e, quebrando o tratado, reiniciou as hostilidades. Na Batalha de Gaixia, em 202 AC, o grande general de Liu-Bang, Han-Xin, emboscou e derrotou as forças de Chu sob Xiang-Yu e Liu-Bang foi proclamado imperador (conhecido para a posteridade como Imperador Gaozu de Han). Xiang-Yu suicidou-se, mas sua família foi poupada servindo ainda em posições governamentais.
O novo imperador Gaozu tratou todos os seus anteriores adversários com respeito, unindo a terra sob seu governo. Repeliu as tribos nômades Xiongnu, que realizou algumas incursões à China, e fez a paz com os outros estados que se tinham levantado em rebelião contra a frágil Dinastia Qin. A Dinastia Han (que deriva seu nome do lar de Liu-Bang, na província de Hanzhong) governaria a China, com uma breve interrupção, pelos seguintes 400 anos, de 202 AC a 220 DC. A Dinastia Han dividiu-se em dois períodos: Han Ocidental (202 AC a 9 DC) e Han Oriental (25 a 220 DC).

IV.5 – A DINASTIA HAN

A paz resultante iniciada por Gaozu trouxe a estabilidade necessária para a cultura prosperar novamente. O comércio com o ocidente iniciou durante este tempo e as artes e a tecnologia aumentaram em sofisticação. A Dinastia Han é considerada a primeira a escrever a sua história, mas como Shi Huangdi destruiu muito dos registros históricos dos que vieram antes dele, essa reivindicação permanece em dúvida. Não há dúvida, contudo, de que grandes avanços foram feitos sob a Dinastia Han em todas as áreas da cultura.
O “Canon de Medicina” do Imperador Amarelo, primeiro registro escrito sobre medicina, foi codificado durante a Dinastia Han. O papel foi inventado nesse tempo e a escrita tornou-se mais sofisticada. Gaozu abraçou o Confucionismo, tornando-a a única filosofia do governo, estabelecendo um padrão que continuaria até os dias presentes.
Contudo ele não legislou a filosofia para os demais como Shi Huangdi. Praticou a tolerância para com outras filosofias e, como resultado, a literatura e a educação floresceram sob o seu reinado. Ele reduziu os impostos e licenciou seu exército que, entretanto, reagrupava-se rapidamente quando convocado.
Com sua morte em 195 AC, sua esposa, imperatriz Lu Zhi (241 a 180 AC), instalou uma série de reis fantoches, começando com o príncipe herdeiro Liu Ying (Imperador Hui, que reinou entre 195 e 188 AC), que atendeu os interesses dela, mas ainda continuou com suas próprias políticas. Estes programas mantiveram a estabilidade e a cultura, permitindo que o maior dos imperadores Han, Wu Ti (também conhecido como Wu, o Grande, que reinou de 141 a 87 AC) embarcasse em seus empreendimentos de expansão, obras públicas e iniciativas culturais. Ele enviou seu emissário Zhang Qian ao ocidente em 138 AC que acabou resultando na abertura oficial da Estrada da Seda em 130 AC
O Confucionismo foi, além disso, incorporado como a doutrina oficial do governo e Wu Ti estabeleceu escolas por todo o império para promover a leitura e escrita e ensinar os preceitos de Confúcio. Ele também reformou o transporte, as estradas e o comércio, decretando muitos outros projetos públicos, empregando milhões como trabalhadores do estado nesses empreendimentos. Após Wu Ti, seus sucessores praticamente mantiveram sua visão para a China e tiveram sucesso similar.
O aumento na riqueza conduziu ao nascimento de estados grandes e prosperidade geral, mas para os camponeses que trabalhavam na terra, a vida tornou-se cada vez mais difícil. Em 9 DC o regente atuante, Wang Mang (45 AC a 23 DC), usurpou o controle do governo, reivindicando o Mandato do Céu para si próprio e declarando o fim da Dinastia Han, fundando a Dinastia Xin (9 a 23 DC) sobre a plataforma de uma extensa reforma da terra e redistribuição de riqueza.
Inicialmente ele teve enorme apoio da população camponesa e oposição dos proprietários das terras. Seus programas, contudo, foram pobremente concebidos e executados, resultando num desemprego geral e ressentimento. Revoltas e grandes enchentes do Rio Amarelo mais ainda desestabilizaram o governo de Wang Mang e ele foi assassinado por uma turba furiosa de camponeses por quem ele havia ostensivamente tomado o governo e iniciado suas reformas.

IV.6 – A QUEDA DA DINASTIA HAN E A ASCENSÃO DA DINASTIA XIN

A ascensão da Dinastia Xin encerrou o período conhecido como período Han Ocidental e seu fim conduziu ao estabelecimento do período Han Oriental. O Imperador Guangwu (que reinou entre 25 e 57 DC) devolveu as terras aos ricos proprietários do estado e restaurou a ordem na terra, mantendo as políticas dos governantes do antigo Han Ocidental. Guangwu, ao recuperar terras perdidas durante a Dinastia Xin, foi forçado a despender muito do seu tempo abafando rebeliões e restabelecendo o governo chinês nas regiões da moderna Coreia e Vietname.
A rebelião das Irmãs Trung de 39 DC no Vietname, conduzida por duas irmãs, exigiu a participação de dez mil homens e qutro anos para ser debelada. Mesmo assim, o imperador consolidou seu governo e ainda expandiu suas fronteiras, propiciando a estabilidade que deu origem a um aumento no comércio e prosperidade. Ao tempo do Imperador Zhang (reinou entre 75 e 88 DC), a China foi tão próspera a ponto de se tornar parceira no comércio de todas as maiores nações da época e continuou nesse caminho após sua morte. Os romanos sob Marcus Aurelius, em 166 DC, consideravam a seda chinesa mais valiosa que ouro, pagando à China o preço que ela pedisse.
Disputas entre a baixa nobreza proprietária e os camponeses, contudo, continuaram a causar problemas para o governo, como exemplificado pela Rebelião dos Cinco Montes de Arroz (142 DC) e a Rebelião do Turbante Amarelo (184 DC). Embora a primeira começasse como um movimento religioso, envolveu muitas pessoas da classe camponesa em desacordo com os ideais de Confúcio do governo e da elite. As duas revoltas foram uma resposta à negligência governamental para com o povo, que piorou à medida que a Dinastia Han, ao final, tornava-se cada vez mais corrupta e inefectiva. Os líderes das duas rebeliões pregavam que a Dinastia Han havia faltado com o Mandato do Céu e tinha que abdicar.
O poder do governo para controlar o povo começou a desintegrar-se até que uma revolta em grande escala irrompeu por todo o país com o aumento da Rebelião do Turbante Amarelo. Os generais de Han foram enviados para abafar a rebelião, mas logo que um território era esmagado, outro surgia. A revolta foi, finalmente, encerrada pelo General Cao Cao (viveu entre 155 e 220 DC). Cao Cao e seu anterior amigo e aliado Yuan-Shao então lutaram entre si pelo controle das terras, com Cao Cao saindo vitorioso no norte. Tentou uma completa unificação da China invadindo o sul, mas foi derrotado na Batalha dos Penhascos Vermelhos, em 208 DC, deixando a China dividida em três reinos separados: Cao Wei, Wu Oriental e Shu Han, cada um dos quais reivindicando o Mandato do Céu. Esta era é conhecida como o Período dos Três Reinos (220-228 DC), um período de violência, instabilidade e incerteza que inspiraria, mais tarde, alguns dos maiores trabalhos da literatura chinesa.
A Dinastia Han era então uma memória, e outras dinastias, de vida mais curta (como a Wei e Jin, a Wu Hu e a Sui) assumiram o controle do governo, por vez, iniciando suas próprias plataformas entre 208 e 618 DC. A Dinastia Sui (589-618 DC) finalmente teve sucesso na reunificação da China em 589 DC. A importância da Dinastia Sui está na sua implementação de uma burocracia altamente eficiente que modernizou a operação do governo conduzindo a uma tranquilidade maior na manutenção do Império. Sob o Imperador Wen e então seu filho Yang, o Grande Canal foi completado e a Grande Muralha alargada com a reconstrução de algumas porções, o exército foi aumentado à maior dimensão do mundo à época e a cunhagem foi padronizada por todo o reino.
A literatura floresceu e diz-se que a famosa “Lenda de Hua Mulan”, sobre uma jovem que toma o lugar do seu pai no exército e salva o país, foi desenvolvida nessa ápoca (embora o poema original pareça ter sido composto durante o Período Wei Norte, 386-535 DC). Infelizmente, nem Wen, nem Yang estavam contentes com a estabilidade doméstica e organizaram expedições maciças contra a Península Coreana. Após haver arruinado o tesouro com seus projetos de construção e campanhas militares, Yang seguiu o exemplo de seu pai também falhando nas conquistas militares. Yang foi assassinado em 618 DC quando então iniciou o levante de Li-Yuan que tomou o controle do governo, denominando-se Imperador Gao-Tzu de Tang e reinando de 618 a 626 DC).

IV.7 – A DINASTIA TANG

A Dinastia Tang (618 a 907 DC) é considerada a idade de ouro da Civilização Chinesa. Gao-Tzu prudentemente manteve e melhorou a burocracia iniciada pela Dinastia Sui, enquanto evitando operações militares e projetos de construção extravagantes. Com modificações menores, as políticas burocráticas da Dinastia Tang ainda estão em uso pelo governo chinês da atualidade.
A despeito de seu eficiente governo, Gao-Tzu foi deposto por seu filho Li-Shimin, em 626 DC. Após assassinar seu pai, Li-Shimin matou seus irmãos e outros da nobreza, assumindo o título de Imperador Taizong, reinando de 626 a 649 DC. Após o golpe sangrento, Taizong decretou que templos budistas[3] fossem construídos nos locais de batalhas e que os mortos fossem celebrados.
Continuando sua construção sobre os conceitos de adoração aos ancestrais e o Mandato do Céu, Taizong reivindicou vontade divina em suas ações, sugerindo que os que havia matado, eram agora seus conselheiros no após vida. À medida que mostrava ser um eficiente governante, bem como um hábil estrategista militar e guerreiro, seu golpe permaneceu sem desafio e ele se dedicou à tarefa de governar o seu vasto império.
Taizong seguiu os preceitos de seu pai mantendo muito do que era bom da Dinastia Sui, com melhorias. Isso pôde ser visto especialmente em seu código legal grandemente baseado nos conceitos da Sui, mas ampliados no que se refere à especificidade de crimes e punições. Ignorou o modelo de seu pai de política externa e embarcou numa série de campanhas militares vencedoras que ampliaram e garantiram o seu império, ajudando a difundir o seu código legal e a cultura chinesa.
Taizong foi substituído por seu filho Gaozong (reinou entre 649 e 683 DC), cuja esposa, Wu Zetian, se tornaria a primeira e única monarca mulher. A Imperatriz Wu Zetian (reinou entre 690 e 704 DC) iniciou um bom número de políticas que melhoraram as condições de vida na China, fortalecendo a posição do imperador. Ela também fez uso de uma força policial secreta e de canais de comunicação altamente eficientes para estar sempre à frente de seus inimigos domésticos e exteriores.
O comércio floresceu dentro do império e, ao longo da Estrada da Seda, com o Ocidente. Com a queda de Roma, o Império Bizantino tornou-se o principal comprador da seda chinesa. Ao tempo do Imperador Xuanzong (reinou entre 712 e 756 DC), a China foi o maior, mais populoso e mais próspero país do mundo. Devido à sua grande população, exércitos de muitos milhares de homens podiam ser convocados e as campanhas militares contra os turcos nômades ou rebeldes internos eram rápidas e com sucesso. A arte, tecnologia e ciência floresceram sob a Dinastia Tang (embora o pico da ciência tenha ocorrido ao final da Dinastia Sung, de 960 a 1234 DC) e muitas das mais importantes peças da escultura e prataria chinesa veem desse período.

IV.8 – A QUEDA DA DINASTIA TANG E ASCENSÃO DA DINASTIA SONG

Contudo, o governo central não era universalmente admirado e levantes regionais eram uma questão regular. O mais importantes destes, foi a Rebelião Na Shi (também conhecida como rebelião An Lushan) de 755 DC. O General An Lushan, um favorito da Corte Imperial, reagiu contra o que ele viu como extravagância intolerável do governo. Com uma força de 100.000 soldados ele se rebelou e declarou-se o novo imperador pelos preceitos do Mandato do Céu.
Embora sua revolta fosse sufocada cerca de 763 DC, as causas subjacentes da insurreição e ações militares adicionais continuaram a fustigar o governo até 770 DC. A mais aparente consequência da rebelião An Lushan foi uma dramática redução na população da China. Estima-se que cerca de 36 milhões de pessoas morreram como resultado direto da rebelião, seja em batalha, como retaliação ou por doenças e falta de recursos.
O comércio sofreu, os impostos não foram arrecadados e o governo, que havia abandonado Chang’an quando a revolta começou, foi ineficiente na manutenção de qualquer tipo de presença significativa. A Dinastia Tang continuou a sofrer de revoltas domésticas e, após a Rebelião Huang Chao (874-884 DC), nunca conseguiu se recuperar. O país se esfacelou no período conhecido como "As Cinco Dinastias e Dez Reinos" (907-960 DC), com cada regime reivindicando a legitimidade para si próprio, até a ascensão da Dinastia Song (Aka Sung).
Com a Dinastia Song, a China tornou-se novamente estável e as instituições, leis e costumes foram mais codificadas e integradas na cultura. O Neo Confucionismo tornou-se a filosofia mais popular do país, influenciando suas leis e costumes e dando forma à cultura da China ainda reconhecível atualmente. Contudo, a despeito dos avanços em cada área de civilização e cultura, a antiga discórdia entre ricos proprietários de terra e os camponeses que trabalhavam a terra, continuou pelos séculos seguintes.
Revoltas periódicas de camponeses foram esmagadas tão rapidamente quanto possível, mas remédios efetivos nunca foram oferecidos às queixas populares e cada ação militar buscava os sintomas do problema em vez do próprio problema. Em 1949, Mao Tse Tung conduziu uma revolta popular na China, derrubando o governo e instituindo a República Popular da China com a promessa de que, finalmente, todos seriam igualmente ricos. Assunto para uma próxima publicação.


[1] “A Arte da Guerra é um tratado militar do século V AC que se supõe ter sido escrito pelo estrategista chinês Sun-Tzu. Cobrindo todos os aspectos da arte da guerra, ele busca aconselhar os comandantes sobre como preparar, mobilizar, atacar, defender e tratar os derrotados. Um dos mais influentes textos na história, tem sido usado por estrategistas militares por mais de 2.000 anos e admirado por líderes como Napoleão e Mao Tze Tung.
[2] O Legalismo, na China Antiga, era uma crença filosófica de que os seres humanos são mais inclinados a fazer o errado do que o certo, porque são inteiramente motivados por interesses próprios e necessitam de leis estritas para controlar seus impulsos.
[3] O Budismo é uma religião não teística (não há uma crença num Deus criador), também considerada uma filosofia e uma disciplina moral, originada na Índia, no sexto e quinto séculos AC. Foi fundado pelo sábio Siddhartha Gautama (o Buda, cerca de 563 a 483 AC) que, de acordo com a lenda, tinha sido um príncipe hindú.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

A CHINA ANTIGA (PARTE 1/2)

I - INTRODUÇÃO

Foi a leitura recente de um livro de 1989, “Criação” (no original, “Creation”), do conhecido autor americano Gore Vidal, que me levou à realização da presente pesquisa, embora há muito tempo já, tenha me dado conta de que pouco ou nada conhecia da história da China Antiga. Para suprir mais essa lacuna, resolvi enfrentar o desafio de realizar a pesquisa sobre o assunto, na busca de esclarecimentos sobre cultura tão diversa da cultura ocidental tão nossa conhecida.
Para os que apresentarem interesse, informo, de saída, que o foco será dado à história da China Antiga, já que a China Moderna, por ser hoje, militarmente, uma potência, embora possuir uma população imensa e pobre, encontra-se, como se diz vulgarmente, na “boca do povo”, muito de acordo com as preferências ideológicas de cada indivíduo. Além disso, peço a compreensão dos leitores para o fato de que, dadas as dimensões continentais da China e a sua civilização de extensão milenar, não abordaremos o assunto com a profundidade que gostaríamos de apresentar, pela impossibilidade do tempo que teríamos que dedicar à pesquisa. O objetivo maior é, em escala macroscópica, trazer ao conhecimento dos leitores a origem e o desenvolvimento da história da civilização chinesa, sem o aprofundamento dos detalhes.

II - DEFINIÇÃO

A China moderna, oficialmente República Popular da China (RPC), é um país da Ásia Oriental, com a segunda maior população do mundo, ultrapassando 1,4 bilhões de pessoas. Em largura o país se espalha pelo equivalente a cinco fusos horários diferentes e faz fronteira com quatorze países por terra, mantendo com a Rússia a sua maior fronteira. Com uma área de aproximadamente 9,6 milhões de km² é o terceiro maior país do mundo em área terrestre. Além de 22 províncias, possui cinco regiões autônomas, quatro municipalidades e duas regiões administrativas especiais: Hong Kong e Macau. A capital nacional é Beijing (antiga Pequim) e a cidade mais populosa e maior centro financeiro é Shangai. 
Em verde escuro os territórios controlados pela China
Moderna; em verde claro os territórios reivindicados

A China Antiga produziu o que se tornou a mais antiga cultura existente no mundo. O nome “China” vem do Sânscrito[1] Cina (derivado do nome da dinastia chinesa Qin, pronunciada ‘Tchin’) que foi traduzida como ‘Cin’ pelos Persas (hoje iranianos) e parece ter-se popularizado através do comércio ao longo da “Estrada de Seda”, uma rede de antigas rotas de comércio, formalmente estabelecidas durante a Dinastia Han da China em 130 AC, que ligava as regiões do mundo antigo em comércio, entre 130 AC e 1453 DC.
Os romanos e os gregos conheciam o país como “Seres”, a terra de onde vinha a seda. O nome ‘China’ não aparece em forma impressa no ocidente, até 1516 DC, onde surgiu nos relatório de Barbosa[2] narrando suas viagens ao oriente (embora os europeus há muito conhecessem a China através do comércio via Estrada da Seda). Marco Polo, o famoso explorador que tornou a China conhecida da Europa no século XIII DC, se referia à terra como Cataí. No chinês mandarim, o país é conhecido como ‘Zhongguo’, significando “Estado Central” ou “império do meio”.

III - PRÉ-HISTÓRIA 
A Estrada da Seda interligando os países do
mundo então conhecido

A prática da arqueologia na China está enraizada na moderna história chinesa. Os reformadores políticos e intelectuais dos anos 1920’ desafiaram a historicidade dos lendários inventores da cultura chinesa, como Shennong[3], o Agricultor Divino, e Huangdi[4], o Imperador Amarelo. Ao mesmo tempo, o estudo científico do período pré-histórico era financiado por arqueólogos e paleantropologistas ocidentais. O estabelecimento da Academia Sínica (Academia Chinesa de Ciências), em 1928, permitiu aos estudiosos chineses analisarem a arqueologia chinesa e fazer preparações para escavações em larga escala. Um notável trabalho foi feito sob a direção do arqueólogo Li Chi em Anyang, província de Henan, suspenso com a irrupção da guerra Sino-Japonesa em 1937. A guerra civil do final dos anos 1940’ e as subsequentes rupturas sociais ainda mais retardaram qualquer reinício de sistemática escavação e publicação arqueológica. Contudo, à medida que a Revolução Cultural decaía no meio dos anos 1970’, o trabalho iniciou novamente para valer e a Associação Chinesa de Arqueologia foi estabelecida em 1979. Uma nação modernizante começou a produzir sabedoria, crescentemente informada por análise científica, em quantidade e qualidade comensuráveis com seu tamanho e suas tradições de aprendizagem.
Bem antes do advento de uma reconhecível civilização (termo aplicado a qualquer sociedade que tenha desenvolvido um sistema de escrita, governo, produção de alimento excedente, divisão do trabalho e urbanização) na região, a terra era ocupada por hominídeos, família taxonômica dos grandes primatas que inclui os quatro grandes gêneros existentes: Chimpanzés (duas espécies), Gorilas (duas espécies), Humanos (uma espécie) e Orangotangos (três espécies). O Homem de Pequim, um fóssil de crâneo descoberto em 1927, próximo de Beijing, viveu na área entre 700.000 e 300.000 anos atrás, e o Homem de Yuanmou em 1965, habitou a terra cerca de 1,7 milhões de anos atrás. Evidência revelada por esses achados mostra que esses habitantes primitivos sabiam como fabricar ferramentas de pedra e usar o fogo.
Embora comumente aceito que os seres humanos se originaram na África, migrando para outros pontos de todo o globo, paleoantropólogos da China “apoiam a teoria da ‘evolução regional’ da origem do homem”, que sustenta uma base independente para o nascimento dos seres humanos. “O Macaco Shu, um primata pesando apenas entre 100 a 150 gramas, similar a um rato em tamanho, viveu na China durante a época do Eoceno Médio de 4,5 a 4,0 milhões de anos atrás. Sua descoberta colocou um grande desafio à teoria africana da origem da raça humana”, plausível devido às ligações genéticas entre o fóssil do macaco Shu e os primatas avançados e inferiores, permanecendo então, como um ‘elo perdido’ no processo evolutivo. 
Vila de Banpo: testemunho da sofisticada
cultura da China Antiga
Qualquer que seja a interpretação desses dados, a sólida evidência fornecida por outros achados consubstancia uma linhagem muito antiga de hominídeos e homo sapiens (‘homem inteligente’ ou humanos modernos) na China e um alto nível de sofisticação numa cultura antiga. Um exemplo disso é a Vila Banpo, no vale do Rio Amarelo, próximo de Xi’na, descoberta em 1953, uma vila do Neolítico (último estágio da Idade da Pedra, o Paleolítico e o Mesolítico os outros dois) que foi habitada entre 4.500 e 3.750 AC, compreendendo 45 casas com assoalhos enterrados no chão para maior estabilidade. Uma vala circundando a vila, fornecia proteção aos ataques externos e funcionava como sistema de drenagem (mas também servindo para manter confinados os animais domésticos), enquanto cavernas cavadas pelo homem eram usadas para armazenar alimentos. O projeto da vila e os artefatos lá descobertos (cerâmica e ferramentas), indicam uma cultura muito adiantada para o tempo em que foi construída.
Tem sido geralmente aceito que o ‘Berço da Civilização” chinesa é o Vale do Rio Amarelo, que deu origem a vilas cerca de 5.000 AC. Enquanto isso tenha sido discutido – e argumentos tenham sido colocados para o desenvolvimento mais espalhado de comunidades – não há dúvida de que a Província de Henan, no Vale do Rio Amarelo, região nordeste da China moderna, foi o local de muitas vilas e comunidades de cultivo.
Em 2001, arqueólogos desenterraram esqueletos enterrados em uma casa desmoronada coberta com uma espessa camada de depósitos de silte do Rio Amarelo. Na camada de depósitos, arqueólogos encontraram mais de 20 esqueletos, um altar, uma praça, cerâmica e utensílios de pedra e jade. Este sítio é somente uma de muitas vilas pré-históricas na área.

IV - AS DINASTIAS CHINESAS

De acordo com historiadores como Sima Qian (145 a 86 AC), existiu um grande governante chamado Huang-ti (também conhecido por Huangdi, ‘imperador’), mais bem conhecido como o Imperador Amarelo, que emergiu de um sistema tribal da China pré-histórica para governar a região de Shandong entre 2697 e 2597 AC. O Imperador Amarelo criou uma cultura chinesa e estabeleceu uma forma de governo que duraria séculos. A ele é creditada a invenção de instrumentos musicais, o desenvolvimento da produção da seda, a instituição da lei e costumes e o desenvolvimento da medicina e agricultura. Com a susa morte, ele foi enterrado no Condado de Huangling, Província de Shaanxi, num mausoléu que ainda é hoje uma popular atração turística.
Huang-ti foi sucedido por seu neto Zhuanxu, uma dos famosos “Cinco Imperadores”, que fundou a tribo Xia. Após derrotar seus rivais, a tribo Xia estabeleceu a primeira dinastia na China sob a liderança do Imperador Yao que ordenou a construção de grandes palácios e pequenas vilas de choupanas se desenvolveram em centros urbanos. O Imperador Yao é considerado o grande rei filósofo que governou seu povo com sabedoria e trabalhou no seu melhor interesse, de acordo com os preceitos de Huang-ti.
Dessas pequenas vilas e comunidades agrícolas cresceu um governo centralizado, o primeiro dos quais foi a pré-histórica Dinastia Xia, cerca de 2070-1600 AC. A Dinastia Xia foi considerada, por muitos anos, mais mito do que fato, até que escavações nos anos 1960 e 1970 descobriram sítios que fortaleceram sua existência. Trabalhos e tumbas em bronze claramente apontam para um evolucionário período de desenvolvimento entre discrepantes vilas da Idade da Pedra e uma reconhecida civilização coesiva.
A Dinastia foi fundada pelo lendário Yu, que trabalhou implacavelmente por 13 anos para controlar a inundação do Rio Amarelo que rotineiramente destruía as lavouras dos fazendeiros. Ele foi tão focado em seu trabalho que se dizia que ele nunca retornou uma só vez à sua casa durante todos aqueles anos, embora possa ter passado em sua casa em pelo menos três ocasiões e essa dedicação inspirou outros a segui-lo. 
Yu, o Grande, fundador
da Dinastia Xia
Após ter controlado as inundações, Yu foi nomeado comandante dos exércitos do então governante Shun e tendo conquistado as tribos Sanmiao, que se opunham ao governo Xia, foi por ele nomeado seu sucessor, reinando até a sua morte. Yu estabeleceu o sistema hereditário de sucessão, daí criando o conceito de dinastia, hoje tão familiar. O governo de Yu é considerado o início da dinastia Xia e ele ficou sendo conhecido por Yu, o Grande, não somente por suas vitórias sobre as cheias e contra os seus inimigos, mas pelo estabelecimento de um governo central estável e a organização do país em nove províncias de modo a tornar mais facilmente administrável a enorme área do país.
A classe governante e a elite viviam em agrupamentos urbanos, enquanto a população camponesa, que apoiava o estilo de vida da elite, permanecia grandemente agrária, vivendo em áreas rurais. O filho de Yu, chamado Qi, o sucedeu e o poder permaneceu nas mãos da família até que o último governante Xia, de nome Jie, foi derrubado por Tang, que estabeleceu a Dinastia Shang (1600-1046 AC).
Tang era do reino de Shang. As datas popularmente fixadas para ele (1675-1646 AC) não correspondem de forma alguma aos eventos em que ele tomou parte e devem ser consideradas erradas. O que é sabido é que ele era o governante ou pelo menos personagem importante no reino de Shang que, cerca de 1600 AC conduziu uma revolta contra Jie, derrotando suas forças na Batalha de Mingtiao.
A extravagância da corte Xia e a carga resultante para a população parecem ter sido as causas do levante. Tang então assumiu a liderança da terra, baixou os impostos, suspendeu os grandiosos projetos de construções iniciados por Jie (que drenavam os recursos do reino) e governou com tal sabedoria e eficiência que fizeram florescer a arte e a cultura. A escrita se desenvolveu sob a Dinastia Shang, bem como a metalurgia do bronze, a arquitetura e a religião. 
Rei Tang de Shang fundador
da Dinastia Shang

Antes dos Shang, o povo adorava muitos deuses, com um deus supremo, Shangti, como líder do panteão (mesmo padrão encontrado em outras culturas). Shangti era considerado o ‘grande ancestral’ que presidia sobre a vitória na guerra, agricultura, o tempo e o bom governo. Como ele estava tão longe e tão ocupado, contudo, o povo parece ter solicitado outros intercessores imediatos para suas necessidades e assim começou a prática da adoração de ancestrais.
Quando alguém morria, pensava-se que ele tinha atingido poderes divinos e assim podiam ser chamados para assistência nas necessidades (semelhante à crença romana nos pais). Essa prática conduziu a rituais altamente sofisticados dedicados a apaziguar os espíritos dos ancestrais, que incluíam ornados enterros em grandes tumbas contendo tudo que alguém necessitaria para aproveitar uma confortável vida após a morte.
O rei, além dos seus deveres seculares, servia como principal executor e mediador entre o vivo e o morto e seu governo era considerado ordenado por lei divina. Embora o famoso “Mandato do Céu” fosse desenvolvido pela posterior Dinastia Zhou, a ideia de ligar um governante justo com a vontade divina, tem suas raízes nas crenças patrocinadas pela dinastia Shang. O “Mandato do Céu” era a fonte divina de autoridade e o direito de governar dos primeiros reis e então imperadores da China. O deus antigo ou força divina, conhecida como Céu, selecionava um particular indivíduo para governar na terra em seu nome. Um elemento importante do “Mandato do Céu” era o fato de que, embora o governante obtivesse um grande poder, ele também tinha a obrigação moral de usá-lo para o bem do seu povo. Se o governante não agisse assim, seu Estado sofreria terríveis desastres e ele perderia o direito de governar.

IV.1 - A DINASTIA ZHOU

Em torno do ano 1046 AC, o Rei Wu, da província de Zhou, rebelou-se contra o Rei Zhou de Shang, derrotando suas forças na Batalha de Muye e estabelecendo a Dinastia Zhou (de 1046 a 256 AC). 1046 a 771 AC marca o Período Zhou Ocidental, enquanto 771 a 256 AC marca o Período Zhou Oriental. Wu rebelou-se contra o governante Shang por ter matado seu filho mais velho injustamente. O Mandato do Céu foi invocado por Wu e sua família para legitimar a revolta, já que Shang não estava mais agindo no interesse do povo e assim teria perdido o mandato entre a monarquia e o deus da lei, ordem e justiça, Shangti.
O Mandato do Céu foi assim definido como a benção dos deuses sobre um governante justo para governar por mandato divino. Quando o governo não mais servisse a vontade dos deuses, tal governo seria derrubado. Além disso, foi estipulado que poderia haver somente um legítimo governante da China e que esse governo deveria ser legitimado por sua própria conduta como um administrador das terras a ele confiadas pelo céu. O governo poderia ser passado de pai para filho somente se a criança possuísse a necessária virtude para governar. Esse mandato seria mais tarde muitas vezes manipulado por vários governantes que entregavam a sucessão a descendentes sem valor. 
Confúcio, filósofo chinês
do século VI AC
Sob a Dinastia Zhou a cultura floresceu e a civilização se espalhou. A escrita foi codificada e a metalurgia do ferro tornou-se crescentemente sofisticada. Os maiores e mais conhecidos filósofos e poetas chineses, Confúcio[5], Mencio[6], Mo Ti (Mot Zu), Lao-Tzu, Tao Chien e o estrategista militar Sun-Tzu (se ele existiu como apresentado), vieram do Período Zhou na China e do tempo das ‘Cem Escolas de Pensamento’.
O chariot (veículo leve, usualmente sobre duas rodas, puxado por um ou mais cavalos), que havia sido introduzido na região sob a Dinastia Shang, tornou-se mais plenamente desenvolvido pela Dinastia Zhou. É importante notar que esses períodos e dinastias não começaram, nem terminaram, tão claramente como aparece nos livros de história e que a Dinastia Zhou compartilhou muitas qualidades com a Shang (incluindo língua e religião). Embora os historiadores achem necessário, para deixar claro, quebrar os eventos em períodos, a Dinastia Zhou continuou a existir através dos períodos reconhecidos seguintes como “O Período da Primavera e Outono” e o “Período dos Estados Guerreiros”[7].
(Conclusão na próxima postagem)


[1] O Sânscrito é visto como a língua antiga do Hinduísmo (a mais antiga religião do mundo, originária da Ásia Central e do Vale do Rio Indos, ainda praticada atualmente), onde era usada como meio de comunicação e diálogo pelos Deuses Celestiais Hindu e então pelos Indo-Arianos (o termo Ariano era usado como termo auto identificador de um grupo migratório da Ásia Central que se estabeleceu no Planalto Iraniano e mais tarde moveu-se para o norte da Índia. É uma língua extraordinariamente complexa, com um vasto vocabulário, ainda amplamente usada hoje na leitura de textos e hinos sagrados.
[2] Duarte Barbosa, pastor e navegador português que completou, em 1518, suas viagens pelas costas da Índia Oriental, China e Arquipélago Índico.
[3] Shennong (chinês: “Agricultor Divino), formalmente Yandi, na mitologia chinesa, o segundo dos imperadores míticos, que teria nascido no século 28 AC, com a cabeça de um touro e o corpo de um homem. Ao inventar a carreta e o arado, domesticando o boi e o cavalo, e ao ensinar seu povo a limpar a terra com o fogo, reputadamente estabeleceu uma sociedade agrícola estável na China. Seu catálogo de 365 espécies de plantas medicinais tornou-se a base de estudos herbáceos posteriores. Contos de sua juventude dizem que ele falou com apenas três dias, caminhou com uma semana e arou um campo com três anos de idade.
[4] Huangdi ((chinês: Imperador Amarelo), formalmente Xuanyuan Huangdi, terceiro dos imperadores mitológicos da China antiga, um herói cultural e santo patrono do Taoismo. Teria nascido cerca de 2704 AC e iniciado seu governo como imperador em 2697 AC. Seu reino lendário é creditado com a introdução das casas de madeira, carros, barcos, o arco e flecha e a escrita. Ele próprio teria derrotado os “bárbaros” numa grande batalha em algum lugar no que é hoje Shanxi, o que lhe rendeu a liderança de tribos de toda a planície do Huang He (Rio Amarelo). Algumas tradições também lhe creditam a introdução de instituições governamentais e o uso de moeda cunhada. A esposa de Huangdi teria descoberto a sericultura (produção da seda) e ensinado as mulheres a criar os bichos da seda e tecer os tecidos de seda.
[5] Confúcio foi um filósofo chinês do século VI AC. Seus pensamentos, expressos na filosofia do Confucionismo têm influenciado a cultura chinesa até os dias atuais, embora seja difícil separar a realidade do mito. Considerado o primeiro professor, seus ensinamentos são expressos em frases curtas abertas a várias interpretações.
[6] Mencio, também conhecido como Mang-Tze ou Mang-Tzu, foi um filósofo seguidor de Confúcio durante o Período dos Estados Guerreiros, considerado o maior após Confúcio, por sua interpretação, formulação e disseminação de seus conceitos. É o quarto dos cinco maiores sábios do Confucionismo: Confucius (551-479 AC), Zengzi (505-435 AC), Tzu-Ssu (481-402 BCE), Mencius (372-289 AC) e Xunzi (ou Hun Kuang (310-235 AC).
[7] O “Período dos Estados Guerreiros” (481/403-221 AC) descreve os três séculos em que vários estados rivais chineses lutaram ferozmente por vantagem e dominação territorial. Por fim o estado Qin saiu vitorioso e estabeleceu o primeiro estado unificado chinês. Além do incessante estado de guerra e, provavelmente, por causa dele, o período viu um desenvolvimento significativo na sociedade, comércio, agricultura, filosofia e artes, estabelecendo as bases para o subsequente florescimento da China Imperial.