IV - OS GERMÂNICOS E O
IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE (Continuação)
Por outro lado, na região que hoje ocupa a França moderna, outro grande grupo germânico se destacou. Os francos, pelo terceiro século da era cristã, habitavam os vales médio e inferior do rio Reno e haviam penetrado as províncias romanas em torno de 250, estabelecendo-se em dois grupos principais: francos sálios e francos ripuários, os primeiros habitando os trechos inferiores do Reno e os segundos, seu curso médio. Os sálios foram conquistados pelo imperador romano Juliano, em 358, tornando-se aliados dos romanos e ocupando seus territórios quando eles se retiraram do vale do Reno, estabelecendo-se na maior parte do território ao norte do rio Loire
Com a saída dos hunos da Gália, cerca de 480 DC, as várias tribos francas independentes que lá habitavam, ainda não constituíam uma nação. Seus chefes mais famosos foram Clódio, Meroveus (seu filho e, historicamente, fundador da dinastia merovíngia) e Childeric (filho de Meroveus), da tribo dos sálios. Com seu filho Clóvis, que o sucedeu, o reino e a história da França realmente iniciaram.
Clóvis, o truculento franco, forjou fantásticas alterações na Gália. Seu casamento com a princesa cristã Clotilde, foi seguido por sua própria conversão e, gradualmente, pela de seu povo. Com um exército bem disciplinado ele derrubou e varreu os últimos pilares do poder romano da Gália, criando um reino cristão bem ordenado que culminou com o seu reino do qual era o único mandatário.
Clóvis, o sábio rei cristão dos francos |
Clóvis sucedeu seu pai Childeric com a idade de 15 anos, no comando da tribo Sália, formada por pagãos, com domínio muito limitado, os cofres vazios, sem grãos ou vinho. Tais dificuldades foram superadas por ele subjugando as tribos vizinhas dos alamanos, burgúndios, visigodos da Aquitânia[1] e os francos ripuários, e tornando o Cristianismo a religião do Estado, em 496, iniciando uma relação muito próxima entre a monarquia franca e o papado. A nova fé proporcionou grandes privilégios e meios de influência, em muitos casos favoráveis a toda a humanidade, sempre com respeito aos direitos individuais de seus cidadãos.
Com a morte de Clóvis, em Paris, em 511, o reino foi dividido entre seus quatro filhos e, pelo século que se seguiu, passou por várias divisões e reunificações até que foi, finalmente, consolidado por Clotaire II, em 613. Entretanto, imediatamente após a sua morte, os reis deixaram de exercer qualquer influência, com a autoridade passando às mãos dos funcionários mais importantes do Estado, principalmente às do administrador do Palácio, o major domus, existente em todos os reinos francos. Entretanto, na Austrasia, região leste, surgiu uma poderosa família, a Carolíngia, que reteve a posse exclusiva da administração palaciana por mais de 100 anos, governando como monarcas, de fato, não no nome. Em 687, Pepino de Herstal, o administrador palaciano Austrasiano, derrotou as forças de Neustria (a região oeste) e a Burgúndia, estabelecendo-se como major domus de um reino unido franco. Seu filho, Charles Martel, estendeu para o leste as fronteiras do reino e, em 732, repeliu os mouros numa batalha decisiva travada em um local entre Tours e Poitiers.
Carlos Magno, legítimo sucessor dos Impe-
radores do Império Romano do Ocidente
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O poder franco atingiu o seu maior desenvolvimento com o neto de Charles Martel e filho de Pepino, o Moço, Charles (768-814) que, estendendo seu reino franco até a Saxônia, Norte da Itália, Croácia, tornar-se-ia o mais poderoso monarca da Europa, como Charlemagne (Carolus Magnus, em latim, ou seja, Carlos Magno). Em 25 de dezembro do ano 800, como dito acima, foi coroado pelo Papa Leão III, em Roma, Carolus Augustus, imperador dos romanos, como o legítimo sucessor (ele e seus sucessores) dos imperadores do Império Romano do Ocidente. O título imperial de Charlemagne foi, mais tarde, conduzido pelos imperadores do Sacro Império Romano Germânico até o início do século XIX (um império que durou mais de mil anos), somente dissolvido por Napoleão em 1806. Suas terras francas, mais especificamente, se transformaram no reino da França, a partir do seu nome. Sem dúvida, assunto para uma nova e importante postagem.
Apenas para fechar o ciclo das migrações, no século VIII, marinheiros germânicos escandinavos iniciaram uma forte expansão, fundando importantes Estados na Europa Oriental e na França, enquanto colonizavam o Atlântico até a América do Norte. Posteriormente, as línguas germânicas se tornaram dominantes em vários países europeus, mas na Europa Meridional e Oriental, a elite germânica acabou por adotar os dialetos nativos eslavos ou latinos. Todos os povos germânicos acabaram sendo convertidos do paganismo para o cristianismo. Os povos germânicos modernos são os daneses (vikings), escandinavos, alemães, holandeses, ingleses, americanos, que ainda falam línguas oriundas dos antigos dialetos germânicos.
V - “INVASÃO” VERSUS “MIGRAÇÃO”
Como fecho desta nossa postagem, gostaríamos de, brevemente, tocar no polêmico e controverso assunto das teorias da invasão e da migração.
Os historiadores têm postulado várias explicações para o aparecimento dos “bárbaros” na fronteira romana: clima e colheitas, pressão da população, “impulso primitivo” em direção ao mar Mediterrâneo, ou um “efeito dominó” (pelo qual os hunos caíram sobre os godos, que por sua vez pressionaram outras tribos diante deles). Tribos bárbaras inteiras (ou nações) inundaram as províncias romanas, encerrando com o urbanismo clássico e iniciando novos tipos de povoamentos rurais. Em geral, os estudiosos franceses e italianos têm caracterizado o fato como um catastrófico evento que destruiu uma civilização e iniciou uma “Idade Negra” que recuou a Europa em um milênio. Historiadores alemães e ingleses, ao contrário, o viram como a substituição de uma “civilização mediterrânea cansada, estéril e decadente” por outra “nórdica, mais viril e marcial”. Têm usado o termo “migração” ao invés de “invasão”, aspirando a uma ideia de perambulação dinâmica do povo indo-germânico. O estudioso Guy Halsall tem visto o movimento “bárbaro” como um resultado da queda do Império Romano e não como uma sua causa. Achados arqueológicos confirmam que tribos germânicas e eslavas eram agricultores estabelecidos, possivelmente apenas empurrados na política de um império que já desmoronava por outras causas, entre elas a “Crise do Terceiro Século” (esse assunto foi abordado na minha publicação anterior sobre a história do Império Romano).
A Crise do Terceiro Século causou alterações significativas dentro do Império Romano, tanto no Ocidente como no Oriente. Em particular, uma fragmentação econômica removeu muito das forças política, cultural e econômica que mantinham a união do Império. A população rural nas províncias romanas tornou-se distanciada das metrópoles, com pouca diferença de outros camponeses ao longo da fronteira romana. Além disso, Roma passou a usar mercenários estrangeiros em escala crescente para defender-se. Esta “barbarização” do Império aconteceu simultaneamente com alterações dentro do barbaricum, designando áreas fora da civilização e/ou do Império Romano. Por exemplo, o Império Romano representou um papel vital na criação de grupos bárbaros ao longo de sua fronteira. Amparados pelo apoio e presentes imperiais, os exércitos dos chefes aliados bárbaros serviam como para-choque contra grupos hostis bárbaros. A desintegração do poder econômico romano enfraqueceu os grupos que passaram a depender dos presentes romanos para a manutenção do seu próprio poder. Com a chegada dos hunos, vários grupos foram pressionados a invadir as províncias por razões econômicas.
A natureza da tomada bárbara de províncias originalmente romanas, variou de região para região. Por exemplo, na Aquitânia, a administração provincial era praticamente autônoma. Na Gália, o colapso do poder imperial resultou em anarquia: os francos e os alamanos foram “sugados” para preencher o vácuo de poder que resultou em conflito. Na Espanha os aristocratas locais mantiveram um poder independente por algum tempo, levantando seus próprios exércitos contra os vândalos. Enquanto isso, a retirada romana da baixa Inglaterra resultou em conflito entre os chefes saxões e os bretões (cujos centros de poder recuaram para o oeste, como resultado). O Império Romano do Oriente tentou manter o controle nas províncias dos Balcãs, a despeito de um exército imperial pouco denso que confiou, principalmente, em milícias locais e num esforço extenso para refortificar o vale do Danúbio. Os ambiciosos esforços de fortificação ruíram, piorando as condições já empobrecidas da população local, resultando na colonização por guerreiros eslavos e suas famílias.
Tais mudanças parecem ter-se originado do colapso do controle político romano que expôs a fraqueza do poder local romano. Em vez de migrações em larga escala, houve a tomada militar por pequenos grupos de guerreiros e suas famílias (que, em geral, somavam dezenas de milhares de pessoas). Tal processo envolveu tomadas de decisão ativa e consciente das populações provinciais romanas. O colapso do poder centralizado enfraqueceu severamente o sentido da identidade romana nas províncias, o que explicaria as dramáticas mudanças culturais experimentadas pelas províncias nessa época, embora poucos bárbaros nelas se estabelecessem. Ao final, os grupos germânicos do Império Romano do Ocidente foram acomodados sem a expropriação ou subversão das sociedades nativas, mantendo uma forma estruturada e hierárquica (mas atenuada) de administração romana. Ironicamente, eles perderam sua identidade única como resultado dessa acomodação, sendo absorvidos na latinização. Em contraste, no leste, tribos eslávicas mantiveram uma existência mais “espartana e igualitária” ligada à terra, mesmo quando participando na pilhagem de províncias romanas. Seus modelos organizacionais não eram romanos e seus líderes não eram normalmente dependentes do ouro romano para o sucesso, adquirindo maior efeito nessas regiões do que os godos, francos ou saxões tiveram nas deles.
Seja como for, o resultado desses movimentos foi a ocupação do espaço mais importante da Europa, que conduziu à formação de uma nova cultura, eclética, que acabou sendo responsável por um conjunto de povos que, ainda presentemente, guardam características dos vários antecedentes daquela região, cujo valor é absolutamente inegável.
[1] A Aquitânia é uma das 27 regiões francesas, situada na região sudoeste
a França, ao longo do Oceano Atlântico e os Pirineus, na fronteira com a
Espanha. Na Idade Média foi um reino e um ducado, cujas fronteiras variaram
consideravelmente.
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