CHARLEMAGNE OU CARLOS MAGNO
(Parte 4 de 4)
VIII - ADMINISTRAÇÃO
1 - Organização
O rei Carolíngio exercia o "bannum", direito de governar e comandar. Sob os francos, era uma prerrogativa real que podia ser delegada. Ele tinha jurisdição suprema em questões judiciais, legislativa, conduzia os exércitos e protegia a Igreja e os pobres. Sua administração era uma tentativa para organizar o reino, a Igreja e a nobreza em seu entorno. Como administrador, Carlos Magno se sobressaiu pelas várias reformas que realizou: monetária, governamental, militar, cultural e eclesiástica, tornando-se o principal protagonista do “Renascimento Carolíngio”.
2 - Militar
O sucesso de Carlos Magno residiu, principalmente, em novas tecnologias de cerco e excelentes logísticas, antes da tão aclamada revolução na cavalaria liderada por Carlos Martelo nos anos 730. Contudo, o estribo, que tornou a carga da cavalaria de choque dos lanceiros possível, não foi introduzido no reino franco até o final do século VIII.
Os cavalos foram usados extensivamente pelos militares francos porque eles proporcionavam um longo e rápido transporte das tropas, fator crítico para construir e manter o vasto império.
3 - Reformas Econômicas e Monetárias
Carlos Magno teve um importante papel na determinação do futuro econômico imediato da Europa. Prosseguindo com as reformas de seu pai, ele aboliu o sistema monetário baseado no "sou" (antiga moeda francesa) de ouro, adotando, junto com o rei Anglo-Saxão Offa, de Mercia, o sistema de Pepino, por razões pragmáticas, principalmente uma carência do metal. Tal carência ocorreu como uma consequência direta da conclusão da paz com o Bizâncio, que resultou na cessão da Veneza e Sicília ao oriente e na perda de suas rotas de comércio para a África. A padronização resultante harmonizou e uniu, economicamente, o complexo arranjo de moedas que tinha estado em uso no início do seu reino, assim simplificando o comércio.
Um denarius de Carlos Magno, com a inscrição latina KAROLVS IMP AVG (Karolus Augusto Imperador) cerca de 812–814. |
Carlos Magno estabeleceu um novo padrão, a libra carolíngia (do latim libra, a libra moderna), baseada em uma libra (aproximadamente 454g de peso) de prata – uma unidade, ao mesmo tempo, de dinheiro e peso – valendo 20 sous (do latim "solidus", o moderno shilling) ou 240 deniers (do latim "denarius", o moderno penny). Durante este período, a libra e o sou foram apenas unidades de cálculo; somente o denier foi uma moeda do reino (cunhada). Carlos Magno instituiu princípios para a prática de contabilidade por meio do texto “Capitulare de Villis”, de 802, que estabelecia regras rígidas para o registro de receitas e despesas. Aplicou tal sistema a grande parte do continente europeu e o padrão de Offa foi voluntariamente adotado por grande parte da Inglaterra. Após a morte de Carlos Magno, a cunhagem continental foi degradada e a maioria da Europa recorreu ao uso da permanente moeda inglesa de alta qualidade até cerca do ano 1100.
4 - Judeus no Reino de Carlos Magno
No início de seu comando, Carlos Magno tacitamente permitiu aos judeus monopolizar o empréstimo financeiro a juros, que viria a ser proscrito em 814 porque violava a lei da Igreja. Carlos Magno introduziu o “Capitulário para os Judeus”, uma proibição aos judeus de se engajarem no empréstimo de dinheiro a juros, uma determinação oposta à sua política geral anterior. Além dessa importante modificação, Carlos Magno também realizou um número significativo de reformas microeconômicas, como o controle direto de preços e a taxação de certos bens e mercadorias.
Seu “Capitulário para os Judeus”, entretanto, não foi significativo em sua relação ou atitude econômica geral para com os judeus francos e certamente não em sua relação inicial com eles, que evoluiu ao longo da sua vida. Seu médico pessoal, por exemplo, era judeu assim como Isaac, seu representante pessoal junto ao califado muçulmano de Bagdá. Cartas atribuídas a ele, convidavam os judeus a se estabelecer em seu reino.
5 - Reformas na Educação
Parte do sucesso de Carlos Magno como guerreiro, administrador ou soberano, pode ser devida à sua admiração pelo aprendizado e a educação. Seu reino é muitas vezes referido como “Renascimento Carolíngio” por causa do florescimento da educação, literatura, arte e arquitetura que o caracterizou. Carlos Magno entrou em contato com a cultura e o aprendizado de outros países (especialmente a Espanha moura, a Inglaterra anglo saxã e a Itália lombarda) devido às suas amplas conquistas. Ele aumentou, de forma substancial, a provisão de escolas monásticas e os centros de cópias de livros na França.
Era um amante dos livros que muitas vezes lhe eram lidos durante as refeições. Admirava os trabalhos de Santo Agostinho e sua corte representou um papel chave na produção de livros que ensinavam o latim elementar e diferentes aspectos da Igreja. Teve também papel importante na criação de uma biblioteca real que continha trabalhos profundos sobre a linguagem e a fé cristã.
Carlos Magno encorajou os clérigos a traduzirem credos e orações em seus respectivos vernáculos, bem como a ensinarem gramática e música. Devido ao interesse crescente na busca intelectual e ao estímulo de seu rei, os monges produziram tanta cópia que quase todo o manuscrito daquele tempo foi preservado. Ao mesmo tempo e pela mesma razão, os estudiosos produziram mais livros seculares em vários assuntos que incluíram história, poesia, arte, música, lei e teologia, entre outros. Devido ao crescente número de títulos, as bibliotecas particulares floresceram, principalmente mantidas por aristocratas e religiosos com possibilidade de sustentá-las. Na corte de Carlos Magno, uma biblioteca era criada e um número de cópias de livros era produzida para ser distribuída pelo imperador, lentamente, a mão, principalmente em grandes bibliotecas monásticas. A demanda pelos livros era tal que tais bibliotecas podiam emprestá-los, desde que os tomadores oferecessem uma contrapartida valiosa como compensação.
Muitos dos trabalhos de latim clássico preservados foram copiados e mantidos por sábios carolíngios. De fato, os mais antigos manuscritos disponíveis para muitos textos antigos, são carolíngios, sendo quase certo que todo texto que sobreviveu à idade Carolíngia, ainda sobrevive.
A natureza pan-europeia da influência de Carlos Magno é indicada pelas origens de muitos dos homens que trabalharam para ele, oriundos de vários países da Europa. Carlos Magno promoveu as artes livres em sua corte, ordenando que seus filhos e netos fossem bem-educados e mesmo ele, estudando (num tempo em que líderes que promoviam educação, não tinham tempo para aprender) sob a tutela de Peter de Pisa, com quem aprendeu gramática, Alcuin, com quem estudou retórica, dialética (lógica) e astronomia (ele era particularmente interessado nos movimentos das estrelas); e Einhard, que lhe ensinou aritmética.
Seu grande fracasso escolar foi sua inabilidade na escrita: quando em sua velhice tentou aprender – praticando a formação de cartas em sua cama, durante seu tempo livre, em livros e tabletes de cera, ele o fazia sobre seu travesseiro – seu esforço chegou muito tarde e teve pouco sucesso; sua habilidade na leitura também é discutida.
6 - Reformas na Igreja
Carlos Magno expandiu o programa de reforma da Igreja de forma diversa de seu pai Pepino e seu tio Carlomano. O aprofundamento da vida espiritual foi mais tarde visto como central à política pública e governança real. Sua reforma focou no estreitamento da estrutura de poder da Igreja, melhoramento na prática e qualidade moral do clero, na padronização das práticas litúrgicas, melhoramento nos princípios básicos da fé e na erradicação do paganismo. Sua autoridade se estendeu sobre a Igreja e o Estado. Ele podia disciplinar os clérigos, controlar a propriedade eclesiástica e definir a doutrina ortodoxa. A despeito da legislação severa e alteração súbita, ele captara apoio do clero que aprovava deu desejo de aprofundar a piedade e moral de seus súditos.
Em 809-810, Carlos Magno convocou um concílio da Igreja em Aachen que confirmou a crença unânime no oeste, de que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho e sancionou a inclusão, no Credo de Nicene, da frase “e o Filho”, para o que havia buscado a aprovação do Papa Leão III. O Papa, enquanto afirmando a doutrina e aprovando o seu uso no ensino, opos sua inclusão no texto do Credo como adotado no Primeiro Concílio de Constantinopla de 381. Esse falava da processão (na doutrina católica, crença de que o Filho provém do Pai, e de que o Espírito Santo provém de ambos, no mistério da Santíssima Trindade) do Espírito Santo, do Pai, sem adicionar frases tais como “e o Filho” ou “sozinho”. Enfatizando sua oposição, o Papa teve o texto original inscrito em grego e latim em dois pesados brasões dispostos na Basílica de São Pedro.
7 - Reformas na Escrita
Durante o reino de Carlos Magno, a escrita semi-uncial [1] e sua versão cursiva, que tinham dado origem a várias escritas minúsculas continentais, foram combinadas com características da escrita insular em uso em monastérios irlandeses e ingleses. A minúscula carolíngia foi criada parcialmente sob o patrocínio de Carlos Magno. Alcuin, que dirigia a escola palaciana, foi provavelmente sua maior influência.
O caráter revolucionário da reforma carolíngia, contudo, pode ter sido superenfatizado; esforços para coibir a influência merovíngia e germânica, tinham sido tomadas antes de Alcuin chegar a Aachen. A nova minúscula foi disseminada primeiro de Aaachen e mais tarde pelos copistas influentes de Tours, onde Alcuin se aposentou como abade.
8 - Reformas Políticas
Carlos Magno engajou-se em muitas reformas da governança franca, enquanto prosseguia em muitas práticas tradicionais, tais como a divisão do reino entre filhos.
Em 806 Carlos Magno fez o primeiro documento para a tradicional divisão do império à sua morte. Para Carlos, o Jovem, ele designou a Austrasia e Neustria, Saxônia, Burgundy e Turíngia. Para Pepino (Carlomano rebatizado), ele deu a Itália, Bavária e Swabia. Luís recebeu a Aquitaine, Marca Espanhola e a Provence. O título imperial não foi mencionado, o que levou à sugerir que, naquele instante, Carlos Magno viu o título como algo honorário sem grande significado hereditário.
Pepino morreu em 810 e Carlos em 811. Carlos Magno então reconsiderou o assunto e em 813 coroou seu filho mais jovem, Luís, coimperador e correi dos francos, garantindo-lhe a metade do império e o resto quando de sua morte. A única parte do Império que não foi prometida a Luís foi a Itália, que Carlos Magno entregou especificamente a Bernard, filho ilegítimo de Pepino.
IX - LEGADO
Inauguração da estátua de Carlos Magno, Liège, 26 July 1868 |
Escrevendo em 840, o neto do Imperador, Nithard, declarou que ao final de sua vida, o grande rei havia “deixado toda a Europa cheia de bondade”. Historiadores modernos deixaram ver o exagero naquela declaração, chamando a atenção para as inadequações do aparato político de Carlos Magno, as limitações de suas forças militares em face das novas ameaças de inimigos marítimos, o fracasso de suas reformas religiosas a afetar a grande massa de cristãos, o tradicionalismo estreito e a tendenciosidade clerical de seu programa cultural e as características opressivas de seus programas econômico e social. Tal atenção crítica do papel de Carlos Magno, contudo, não pode ofuscar o fato de que seu esforço para ajustar as tradicionais ideias francas de liderança e bem público para novas correntes na sociedade fizeram uma diferença crucial na história Europeia. Sua renovação do Império Romano no ocidente forneceu a base ideológica para uma Europa politicamente unificada, uma ideia que tem inspirado os europeus desde sempre – algumas vezes com consequências pouco felizes. Seus feitos como um governante, tanto reais como imaginados, serviram como referência para muitas gerações de governantes europeus que procuravam por orientação na definição e execução de suas funções reais. Suas reformas religiosas solidificaram as estruturas organizacionais e práticas litúrgicas que eventualmente juntaram a maior parte da Europa numa Igreja única. Sua definição do papel da autoridade secular na direção da vida religiosa, deitou as bases para a interação entre a autoridade temporal e a espiritual que representava um papel crucial na modelagem das instituições política e religiosa na posterior história europeia ocidental. Seu renascimento cultural forneceu as ferramentas básicas – escolas, curriculo, livros textos, bibliotecas e técnicas de ensino -sobre as quais as renovações culturais seriam baseadas. O ímpeto que ele deu à relação vassalo-lorde e ao sistema de agricultura conhecido como senhorial (em que os camponeses usam a terra de um lorde em troca de deveres e serviços) representou um papel vital no estabelecimento do sistema senhorial (em que os lordes exerciam poder político e econômico sobre um dado território e sua população); o sistema senhorial, por sua vez, possuía o potencial para impor ordem política e social e estimular o crescimento econômico. Tais realizações certamente justificam os superlativos pelos quais ele era conhecido em seu próprio tempo: Carlos Magno e Pai da Europa!
FIM
[1] Uncial: diz-se de letras ou caracteres romanos de grande dimensão (altura de uma unha) em que foram escritos os textos medievais até o século XI. A escrita semi-uncial é menor que a uncial comum.
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