III – OS PRECURSORES DA REFORMA
Como a Renascença, que pouco a antecedeu, a Reforma
tem um grande número de possíveis pontos de partida. O desejo de redescobrir
uma versão mais simples e autêntica da vida cristã é característico de muitos
novos movimentos dentro do Cristianismo, um dos quais o comprometimento com a
pobreza de São Francisco. A reação contra o mundanismo da Igreja é outro tema
recorrente, como o caso de Savonarola[1]. Mas John Wycliffe,
na Inglaterra do século XIV,
introduz tantos fatores da Reforma – com relação a prelados mundanos, a
primazia da escritura e a natureza da Eucaristia – que ele é usualmente
identificado como o principal precursor deste maior de todos os levantes da
história Cristã.
John Wycliffe, precursor das reformas religiosas que
sacudiram a Europa nos séculos XV e XVI
|
Entre 1376 e 1379,
John Wycliffe, escrevendo principalmente de Oxford, segue uma linha controversa
em muitas questões. Ele argumenta que a Igreja não tem um papel correto em
questões materiais e que homens corruptos da Igreja perdem até a autoridade
espiritual supostamente inerente às suas posições. Ele sustenta que tudo que um
cristão precisa é o exemplo da Escritura, que os crentes deveriam poder ler em
suas próprias línguas. Ele nega que o pão e o vinho consagrado sejam
literalmente transubstanciados no corpo e sangue de Cristo. Mais provocativo
que tudo, não encontra justificativa na Bíblia para a autoridade papal. Em
1377, o Papa Gregório XI
ordena que Wycliffe seja preso e examinado, mas contando com protetores
poderosos na Inglaterra, entre eles, John of Gaunt[2],
ele é apenas posto em prisão domiciliar. Em 1378 Gregório XI morre e o papado
mergulha no “Grande Cisma”[3],
originando mais problemas que o herético inglês que muda para passar os últimos
poucos anos de sua vida em Lutterworth, onde morre em 1384. Suas ideias se espalharam
pela Inglaterra cujos seguidores passaram a ser conhecidos como “Lollards” (uma
palavra holandesa para “resmungão), prefigurando muito do que seria associado
com o “Puritanismo”. As “Doze Conclusões” publicadas pelos Lollards, em 1395,
além dos temas de Wycliffe – a maior tarefa do padre é pregar, as escrituras
devem ser acessíveis a todos e a recusa desdenhosa às pretensões de Roma –
repudiavam as imagens, as peregrinações, as vestimentas, a confissão, o celibato
dos padres e mesmo os votos de castidade das freiras. Como seita proibida, os
Lollards somente vão ter qualquer papel na Inglaterra do século XV, mas os
trabalhos de Wycliffe, levados de Oxford para Praga, fermentam uma poderosa
agitação entre os seguidores de John Huss.
Papa Gregório XI, o último Papa antes do “Grande Cisma” |
John Huss, um
professor de filosofia na Universidade de Praga, é nomeado, em 1402, para uma
posição controversa, encarregado da capela de Bethlehem, Praga. Fundada 10 anos
atrás, a capela é associada a uma abordagem radical do Cristianismo. O púlpito,
lugar para sermões na língua tcheca, para pessoas comuns, é tão proeminente
quanto o altar e nele os pregadores pedem por um cristianismo simples, uma
religião de pobreza e humildade, bem diferente da grandeza mundana do papado.
Ao tempo do primeiro envolvimento de Huss com a capela, a tensão foi aumentada
pelo retorno de Oxford de seu jovem amigo Jerome de Prague, que traz consigo
livros de Wycliffe cujos pontos de vista, particularmente a natureza não santa
do papado, coincidem com os de Huss. Por vários anos violentos os reformadores
pregam e agitam em Praga tendo o papado como um alvo fácil já que desde 1378
existiam dois papas rivais; a partir de 1409 eles eram três. Um deles chegou ao
despudor de vender indulgências em Praga para financiar sua campanha contra
seus oponentes. Em 1414 um concílio é reunido em Constance[4]
para resolver a questão dos três Papas. Como voz proeminente da reforma
eclesiástica, Huss é convidado para expor seu caso. O convite implica em perigo
pessoal para Huss, mas ele conta com a promessa de salvo conduto do Imperador
Sigismund. Viaja para a pequena cidade agora cena de brilhante reunião de
potentados cristãos e em semanas de sua chegada Huss é preso com a tácita
aprovação do Imperador.
A execução de Jan Hus, importante precursor da Reforma, em 1415 |
O Concílio trata
da heresia mais rapidamente do que discute com sucesso a redução de três papas
para um. As ideias de Wycliffe e Huss são discutidas e rapidamente condenadas e
o último é queimado na estaca em 1415. Jerome de Prague que corre a Constance
em defesa de seu mestre também é preso e em maio de 1416 é queimado no mesmo
local em que o fora Huss. Como garantia de que não restassem sinais de heresia,
o Concílio espalha as cinzas de Huss no rio Reno, da mesma forma que ordena que
o corpo de Wycliffe seja desenterrado, queimado e destinado a um rio inglês.
Quando as notícias
da morte de Huss chegaram a Praga, o movimento da reforma foi grandemente ampliado.
Seu sucessor na capela de Bethlehem lista quatro princípios radicais em que os Hussitas insistem: liberdade para
pregar; o vinho, como o pão, a ser dado aos fiéis na Missa; um clero
comprometido com a pobreza, junto com a expropriação da propriedade da Igreja;
e uma punição pública de pecadores notórios, entre os quais as prostitutas são
escolhidas por atenção especial. Os Hussitas também discordavam de Roma por
conduzir seus serviços em tcheco ao invés de latim. Suas ideias se espalharam
rapidamente pela Bohemia[5],
alimentadas por uma onda nacionalista antigermânica, já que Huss havia sido
morto em solo germânico, por traição do rei germânico e imperador do Sacro
Império Roman Germânico, Sigismund, meio irmão do rei boêmio Wenceslas IV. Com
sua morte, em 1419, Sigismund pressiona sua reivindicação ao trono da Bohemia e
o reino explode.
Em 1420 os hussitas
constroem uma cidade fortificada em Tabor, a 80 km ao sul de Praga, de onde seu
líder, Jan Zizka, conduz uma série de brilhantes campanhas contra os exércitos
de Sigismund e o novo Papa Martin V. Em 1420 o Papa proclama uma cruzada contra
os hussitas, na primeira vez em que uma heresia é especificamente atacada por determinação
Católica Romana e o Papa acusado de trair o exemplo dos primeiros cristãos de
duas formas: sua universalidade e sua restrição do sacramento. Marchando sob
sua bandeira simbólica, um cálice de comunhão, os hussitas derrotam uma dúzia
de exércitos papais e imperiais enviado contra eles entre 1420 e 1431. Tais
vitórias finalmente arrancam do Papa algumas concessões notáveis da Bohemia, em
termos acordados em 1433.
Pelos
Tratados de Praga de 1433, confirmados pelo tratado de paz de 1436, foi
garantido aos hussitas (1) a permissão papal para dar o sacramento das duas
formas; (2) a apreensão das terras da Igreja em seus territórios; e (3) foi garantida à Bohemia uma igreja independente sob um
arcebispo eleito. Tais concessões não terminaram com a discussão. A divisão
religiosa permaneceu como principal questão por todo o século XV, que viu a
eleição do rei hussita George de Podebrady ao trono da Bohemia em 1458.
Durante o século
XV desenvolveu-se, no noroeste da Europa, um calmo movimento devoto do
Cristianismo, muito diferente da pompa e cerimônia de Roma, como uma percepção
tardia da complexa evolução da Reforma. Conhecido como “Devoção Moderna”, o
movimento derivou da “Fraternidade da Vida Comum”, um grupo de padres e leigos
que compartilhavam uma vida simples semelhante à dos primeiros cristãos, que se
devotavam ao ensino e cuidado do pobre. Um livro escrito no início do século
XV, a Imitação de Cristo,
provavelmente de Thomas de Kempis, transformou-se no manual extremamente
influente, para a devoção cristã. Sem hierarquia e ritual, a ênfase do grupo
ficava na abordagem pessoal de Cristo através do intenso estudo dos primeiros
textos cristãos. Tais textos, originalmente em grego, tinham por séculos sido
conhecidos somente no latim da Vulgata[6].
Tentando retornar às fontes originais, tais estudiosos do norte compartilhavam
o interesse com os pioneiros da Renascença na Itália.
A educação de
Erasmus[7],
nos Países Baixos, na década de 1470, é tingida pela influência da “Devoção
Moderna”. Como a fraternidade, ele pode ser visto como parte de uma tendência
em direção à Reforma, embora ele ardorosamente evitasse endossá-la. Sua atitude
com relação ao papado materialista do século XVI é essencialmente a dos
reformadores. Sua tradução do Novo Testamento grego para o latim, sempre teve
em vista a “Devoção Moderna” e a Reforma.
A Alemanha
estabelece um contexto em que materialismo dentro da Igreja Romana Católica é
ofensivamente evidente. Alguns dos principados que juntos fazem o Sacro Império
Romano, são governados por prelados inescrupulosos vivendo ao estilo dos
príncipes da Renascença, entre eles e principalmente, Albert, arcebispo de Mainz
e um dos sete eleitores imperiais. Com a idade de 24 anos, Albert ocupa um bispado
e um segundo arcebispado além de Mainz. Tal pluralidade é proibida pela lei
canônica, mas o Papa Leão X
negligencia a irregularidade em troca de uma grande doação para os
custos da nova São Pedro. O Papa e o arcebispo eram homens do mundo (o Papa era
um Médici) e o primeiro vê um meio de recompensar o segundo por seus custos,
garantindo-lhe a concessão da venda de indulgências para a Basílica de São
Pedro, com a metade do dinheiro de cada indulgência indo para Roma e a outra
metade para pagar as dívidas de Albert para com a dinastia dos Fuggers a quem
havia solicitado o empréstimo. Este arranjo secreto poderia perturbar os fiéis
se soubessem dele, mas mais chocante foi o procedimento imediato de Johann
Tetzel, a quem Albert empregou para vender as indulgências e que foi muito além
da doutrina oficial das indulgências.
Papa Leão X, Giovanni di Lorenzo de Medici, último Papa não sacerdote |
Johann Tetzel, (1465–1519) foi um frade e pregador dominicano alemão da Igreja Católica. Foi um Grande Inquisidor de Heresia na Polônia, mais tarde tornando-se o Grande Comissário para indulgências na Alemanha. Dizem que ia tão longe a ponto de prometer a liberação das dores do Purgatório assim que uma compra fosse efetuada. Foram as agressivas práticas de “marketing” de Johann Tetzel na promoção desta causa, que provocaram Lutero a escrever suas “Noventa e Cinco Teses”, condenando o que ele via como “compra e venda da salvação”. Na Tese 28 Lutero objetava a um dito atribuído a Tetzel: “Assim que uma moeda tilinta no cofre, uma alma se salva do Purgatório”. As “Noventa e Cinco Teses” não apenas denunciavam tais transações, mas negavam ao Papa o direito de garantir perdão por Deus, em primeiro lugar. A única coisa que as indulgências garantiam, segundo Lutero, era um aumento do lucro e da avareza, porque o perdão da Igreja estava somente no poder de Deus.
Johann Tetzel, o frei dominicano pivô imediato das teses de Lutero |
Na verdade, as palavras de Tetzel não eram
representativas do ensinamento oficial da Igreja sobre as indulgências, mas
antes um reflexo da sua capacidade de exagerar. Contudo, se Tetzel exagerava a
questão das indulgências para os mortos, seu ensinamento de indulgências para
os vivos era puro e quanto a elas, ele sempre ensinou a doutrina pura. A
afirmativa de que ele evidenciava as indulgências como sendo, não apenas uma
remissão da punição temporal do pecado, mas um perdão da sua culpa, é tão
infundada quanto a de que ele vendia o perdão do pecado por dinheiro, sem mesmo
qualquer menção de contrição e confissão, ou que, por pagamento, ele absolvia
de pecados que ainda seriam cometidos no futuro. Seu ensinamento era, de fato,
muito definido e em total harmonia com a teologia da Igreja, como era então e
como é agora, isto é, as indulgências “aplicam-se apenas à punição temporal
devido a pecados dos quais já houve o arrependimento e a confissão”...
O caso era muito diferente com relação às
indulgências para os mortos, para as quais não há dúvida do que Tetzel fez, de
acordo com o que ele considerava suas instruções oficiais: proclamar como
doutrina cristã que nada além de uma doação em dinheiro era necessário para
ganhar a indulgência dos mortos, sem aqui existir qualquer questão de contrição
ou confissão. Ele também ensinou, de acordo com a opinião então tida, que uma
indulgência poderia ser aplicada a qualquer alma, de efeito sem falha. Partindo
dessa hipótese, não há dúvida de que sua doutrina era, virtualmente, a do drástico
provérbio. Foi uma opinião escolástica vaga e certamente nunca uma doutrina da
Igreja, que foi impropriamente usado como verdade dogmática. O primeiro dos
teólogos da corte romana, Cardeal Cajetan, sempre foi inimigo de tais
extravagâncias e declarou, enfaticamente, que mesmo que os teólogos e
pregadores ensinassem tais coisas, não se lhes era preciso dar crédito. Disse
ele que “pregadores falam em nome da Igreja só quando proclamam a doutrina de
Cristo e Sua Igreja; mas que, se para seu próprio benefício, eles ensinam sobre
coisas que nada sabem e que é somente sua própria imaginação, não devem ser
aceitos como porta-vozes da Igreja”.
[1] Girolamo Savonarola (21 de setembro 1452 – 23 de maio 1498) foi um frei dominicano italiano e ativo pregador na Florença renascentista. Ficou conhecido por suas profecias sobre glória cívica, destruição da arte e cultura secular e seus chamados à renovação cristã. Denunciou a corrupção do clero, o governo despótico e a exploração dos pobres. Enquanto Savonarola interferia com o rei francês, os florentinos expulsavam o domínio Medici e por sua incitação estabelecia uma república popular. Declarando que Florença seria a Nova Jerusalém, centro mundial da Cristandade “mais rica, poderosa e gloriosa que nunca”, instituiu uma campanha de extrema austeridade, com ajuda da juventude florentina. Em 1945, quando Florença recusou unir-se à Santa Liga do Papa Alexandre VI contra os franceses, o Vaticano convocou Savonarola a Roma; ele desobedeceu e desafiou o Papa pregando através de um édito que reforçava sua campanha por reformas. Em retaliação, Savanarola foi excomungado pelo Papa em maio de 1497, ameaçando Florença com interdição. Savonarola e dois frades que o apoiavam foram presos e, sob tortura, Savonarola confessou ter inventado suas visões e profecias. Em 23 de maio de 1498, a Igreja e autoridades civis condenaram, enforcaram e queimaram os três frades na principal praça de Florença.
[2] John de Gaunt (6 março 1340 – 3 fevereiro 1399), 1º Duque de Lancaster, o terceiro de quatro filhos sobreviventes do Rei Edward III da Inglaterra e Philippa de Hainault. Chamado “de Gaunt” porque nascido em Ghent, Flandres (hoje Bélgica). Irmão mais novo de Edward, Príncipe de Gales, John teve grande influência sobre o trono inglês enquanto o filho de Edward (Rei Ricardo II) era menor e os períodos que se seguiram de discórdia política. Devido a algumas generosas doações de terras, John foi um dos homens mais ricos de sua era. Fez uma tentativa frustrada à Coroa de Castela por anuência de sua segunda esposa, Constance, herdeira daquele reino, e por algum tempo considerou-se como tal.
[3] Em 1377, após o papado ter residido por quase 70 anos em Avignon, sob a sombra do poder real francês, Gregório XI conseguiu levá-lo de volta a Roma, a despeito da hostilidade de nobres e de seus próprios cardeais. Quando morreu, em março de 1378, vários cardeais ainda viviam em Avignon onde uma parte considerável da burocracia papal ainda funcionava. O “Grande Cisma”, que só foi encerrado pelo Concílio de Constance, em 1417, irrompeu pela impossibilidade da definição de um só Papa e do local de sua Sé.
[4] Constance é uma cidade universitária com aproximadamente 80.000 habitantes localizada na extremidade oeste do lago Constance, sul da Alemanha, fronteira com a Suíça. A cidade abriga a Universidade de Konstanz e foi, por mais de 1.200 anos, a residência da Diocese Católoca Romana de Konstanz.
[5] A Bohemia é uma região histórica da Europa Central, que compreende hoje os terços ocidental e central da República Tcheca. É flanqueada pela Alemanha, Polônia, a histórica região tcheca da Morávia e a Áustria. A Bohemia foi unificada sob a dinastia Premyslid pela qual tornou-se também uma parte autônoma do Sacro Império Romano, após aceitar o Cristianismo no nono século. Charles IV, Imperador do Sacro Império, da dinastia subsequente Luxembourg, estabeleceu a primeira universidade da Europa Central em Praga, estabelecendo a fórmula para o rápido desenvolvimento econômico, cultural e artístico da região.
[6] Em 382 o Papa Damasus encarregou Jerome de produzir uma versão definitiva da Bíblia em Latim. Tal versão, concluída em 405, ficou conhecida como Vulgata, sendo estabelecida como a Bíblia de toda a Igreja Ocidental até a Reforma.
[7] Erasmo de Roterdã (28 de outubro de 1466 – 12 de julho de 1536) foi um padre católico, humanista, crítico social, professor e teólogo da Renascença holandesa. Usando técnicas humanistas de redação, ele preparou importantes novas edições do Novo Testamento em latim e grego, que suscitaram questões influentes na Reforma e Contra Reforma Católica.
PROSSEGUE COM A PARTE 3
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