VIII - RESULTADOS E CONSEQUÊNCIAS DA REFORMA
No que se refere à Igreja Católica Apostólica
Romana, não há dúvida de que a Reforma destruiu a unidade de fé e organização
eclesiástica dos povos cristãos da Europa, removeu muitos milhões do que
considerava, até então, a verdadeira Igreja Católica e despojou-os da maior
parte dos meios saudáveis de cultivo e manutenção da vida sobrenatural. Um
incalculável dano resultou do ponto de vista religioso. A falsa doutrina
fundamental de justificação apenas pela fé, ensinada pelos reformadores,
produziu uma lamentável superficialidade na vida religiosa. O zelo pelas boas
obras desapareceu, o ascetismo que a Igreja havia praticado desde sua fundação
foi desprezado, objetos de caridade e eclesiásticos não foram mais cultivados
adequadamente, os interesses sobrenaturais foram ao solo e as aspirações
naturalistas visando o puramente mundano se espalharam. A negação da autoridade
divinamente instituída da Igreja no que concerne à doutrina e ao governo
eclesiástico, abriu as portas às excentricidades, dando origem à divisão sem
fim de seitas e às disputas sem fim características do Protestantismo,
conduzindo apenas à completa descrença que necessariamente surgiu dos
princípios protestantes. Da real liberdade de crença entre os reformadores do
século XVI, não restou um só traço; ao contrário, a maior tirania em questões
de consciência foi apresentada pelos representantes da Reforma. A mais nociva predominância
do poder secular sobre a religião foi promovida, graças ao reconhecimento, pela
Reforma, das autoridades seculares como suprema nas questões religiosas. Assim
surgiram, desde o início, as várias “igrejas nacionais protestantes”,
totalmente discordantes do universalismo cristão da Igreja Católica e
dependentes, de acordo com sua fé e organização, da vontade do poder secular.
Nesse sentido, a Reforma foi o principal fator na evolução do absolutismo real.
Em cada terra em que ingressou, a Reforma foi a causa de indescritível
sofrimento para o povo; criou guerras civis que duraram décadas, com todos os
horrores e devastações; as pessoas eram oprimidas e escravizadas; tesouros de
arte incontáveis e manuscritos sem preço foram destruídos; entre os membros de
uma mesma terra e raça a discórdia foi semeada. A Alemanha em particular, lar
original da Reforma, foi reduzida a um estado de lastimável miséria pela Guerra
dos Trinta Anos e o Império Germânico foi despejado da posição de liderança que
ocupou por séculos na Europa. Só gradualmente e devido a forças que não se
originaram da Reforma, mas foram condicionadas por outros fatores históricos,
as feridas sociais foram curadas, mas a corrosão religiosa ainda hoje continua
a despeito dos fervorosos sentimentos religiosos que sempre caracterizaram
muitos seguidores individuais da Reforma.
No que nos diz
respeito, o “Aurélio” define a palavra cisma
como a separação – ou cisão - do corpo e da comunhão de uma religião. Mas
também a define como, simplesmente, uma dissidência de opiniões. Nesse sentido,
vários cismas já ocorreram dentro da Igreja Católica Apostólica Romana – que,
até a Reforma, tinha como sinônimo, o Cristianismo -, simplesmente Igreja, e
penso ser natural que assim tenha sido. E explico as razões desse meu ponto de
vista, procurando não me estender demais em questão tão complexa.
A primeira delas,
por evidente, é que o Cristianismo, como outras religiões, mais ou menos
antigas, são instrumentos criados, por inspiração divina ou não, pela
humanidade e, como tal, passíveis de erros ou interpretações e daí a
dissidência futura de opiniões.
No caso do
Cristianismo, tal questão é muito mais profunda. O Cristianismo, que resultou
desde cedo na Igreja Católica Apostólica Romana, pelo nascimento de Cristo, uma
dissidência do Judaísmo surgida na terra dos judeus, é religião monoteísta. Sem
considerar os milagres do Velho Testamento do Judaísmo (e posteriormente do
Cristianismo), a religião dos hebreus não lhes criou tantos problemas de
interpretação quanto o Cristianismo, a começar pelo fato de que os judeus
continuam a esperar pelo seu Messias, isto é, o seu Deus encarnado que ainda
não chegou, o que lhes poupou - e poupa - um sem número de dúvidas e
explicações. Entretanto, muito se enganam os que pensam que dentro do judaísmo
não houve e não há cisões. Na verdade, tais cisões foram tremendamente variadas
e iniciaram tão cedo que já no início da época dos reis judeus, as doze tribos
milenares se separaram em dois grupos: um de dez tribos e outro de duas tribos
apenas. E o interessante é que a genealogia de Abrahão, o ramo considerado
autêntico pelos judeus, que ficou com sua sede em Jerusalém, com o templo de Salomão,
foi o grupo de duas tribos, sendo o outro grande grupo obscurecido pelo tempo e
acabando por desaparecer por completo.
Quem imaginar que
a Reforma de fato teria ocorrido por razões extraordinárias, é porque nunca leu
sobre a história da Igreja que, desde a sua fundação, sempre contou com
profundas dissensões internas de ordem doutrinária.
O Cristianismo,
religião nascida com e por Jesus Cristo, segundo ela, Deus encarnado, que viveu
como humano até os seus 33 anos, teve que produzir explicações convincentes
sobre a existência simultânea do Deus espiritual que ninguém conheceu, e do
Deus que existiu na Terra em forma humana, Cristo, além do Espírito Santo, conceito
ainda mais complexa, numa religião monoteísta. Essa foi apenas uma das várias e
complexas questões surgidas com o Cristianismo, para o qual, desde a sua
fundação, os apóstolos, inicialmente, e os que prosseguiram em sua fundamentação
e organização, posteriormente, tiveram que criar um conjunto de preceitos de
direito eclesiástico – cânones – que resultaram, finalmente, numa Doutrina da
Igreja. Foi essa Doutrina da Igreja, que sempre evoluiu e prossegue evoluindo,
que desde a sua fundação foi cenário de infinitas discussões, dissidências,
fundação de novas seitas ou ramificações e que, no passado, a Igreja conseguiu,
de uma ou de outra forma, manter indivisa e única; até uma certa época, pelo
menos. No início, as dissidências da doutrina da Igreja eram tratadas como
heresias do Cristianismo e resolvidas sem rompimentos. É preciso também
entender que nos primeiros anos do Cristianismo, além dele existia apenas uma
outra religião monoteísta – o Judaísmo – já que o Budismo é muito mais uma
filosofia de vida do que uma religião. Para quem quiser se aprofundar no
assunto e saber como a Igreja evoluiu, eu aconselho a leitura de “Early History
of the Christian Church”, de Louis Duchesne, principalmente o seu primeiro
volume que trata do assunto desde a fundação da Igreja até o século III.
O primeiro cisma
importante com que a Igreja se defrontou, foi o chamado “Grande Cisma do Ocidente-Oriente”
ou “Cisma de 1054” ou “O Grande Cisma”, resultado de um processo muito gradual,
cujas causas deveriam ser buscadas séculos antes de que houvesse suspeita de
seu efeito final. Embora Roma sempre tenha reivindicado uma autoridade especial
sobre as demais igrejas, pelo menos dois outros bispos, conhecidos como
patriarcas, sempre mereceram posição destacada no Cristianismo: o Bispo de
Alexandria e o de Antioquia. A esses se juntaram logo os Bispos de
Constantinopla e Jerusalém, também confirmados como Patriarcas pelo Concílio de
Calcedônia. Esses quatro bispos possuíam precedência sobre os demais bispos da
Igreja. O Bispo de Roma, o Papa, mantinha um status mais elevado pela sua
posição de sucessor de São Pedro, além de ter particular importância pelo fato
de Roma ser a Capital do Império Romano, completando assim o quinto patriarcado.
Mesmo depois que Constantino moveu a capital do Império Romano para
Constantinopla (do Ocidente para o Oriente), em 330 DC, o Papa manteve sua
posição de primeiro entre os iguais (primus
inter pares) na hierarquia da Igreja. Sem entrar em maiores detalhes que
aqui não cabem, diremos apenas que foram muitas as causas do Cisma, políticas e
religiosas, que acabaram por separar da Igreja boa parte da cristandade, que
passou a ser conhecida como Igreja Ortodoxa. A cisão foi tão forte que
provocou, entre outras coisas, a excomunhão recíproca do Patriarca de
Constantinopla, Michael I Cerularius e do Papa Leão IX, incidente somente
encerrado com a reconciliação de 1965 entre o Papa Paulo VI e o Patriarca de
Constantinopla Athenagoras I que anularam as excomunhões de 1054, num gesto
simbólico de boa vontade que não constituiu qualquer espécie de reunião.
Trezentos anos
após esse Grande Cisma, a sede papal foi transferida para Avignon e, em seguida,
ocorreu o “Cisma do Ocidente”, quando a Igreja chegou a ter três Papas
simultaneamente, conforme foi visto no texto. Finalmente, em 1517, a Igreja
enfrentou a Reforma.
Nas duas primeiras
grandes questões ou cismas, é importante notar que a doutrina da Igreja saiu
praticamente intocada, embora pela primeira, a autoridade Papal tenha sido
abandonada por parte da cristandade. O mesmo não aconteceu com a Reforma,
quando praticamente várias religiões foram criadas, algumas com alterações
fundamentais em relação à Igreja Católica, além do rompimento com o Papa. Na
minha opinião, ao invés de complicar, isso talvez explique mais facilmente as
razões da Reforma.
Para quem quiser realmente
entender a Reforma, é preciso ter em mente que o real cristão necessita crer em coisas que dependem exclusivamente
de fé, para as quais não há explicações materiais. Este é ponto de partida para
tudo, inclusive a questão das indulgências. Ocorre que, antes da Reforma, os
seus defensores eram todos religiosos cristãos e deveriam, portanto, crer e
aceitar os pontos complexos; se não cressem, deveriam discutir as questões ao
invés de cindir, que seria – e foi - o caminho mais fácil. É claro que Lutero,
como padre católico, era instruído, honesto e poderia discordar e ter razão em
parte de suas discordâncias da doutrina da Igreja Católica Romana. Como vimos
isso sempre aconteceu desde o início e as diferenças sempre foram contornadas. Entretanto,
a Igreja não poderia abrir mão da sua doutrina fundamental. Lutero teve a chance
de discutir suas teses durante a Dieta de Worms, em 1521; ele as apresentou,
discutiu, foi derrotado, mas continuou dissidente. Em consequência, foi
excomungado e colocado fora da Lei, mas foi protegido por Frederick, o Sábio,
Eleitor da Saxônia e desafiou o que aconteceu depois; a partir deste momento, a
reforma tornou-se política. Em cima de sua revolta, outros aproveitadores
surgiram e provocaram guerras sangrentas que jamais teriam surgido não fosse o
seu movimento. Na verdade, as 95 Teses de Lutero poderiam ter sido discutidas
em Wittenberg, onde foram lançadas.
Como sou obrigado
a concluir, em minha opinião, as duas partes – Igreja Católica e Reformadores –
tiveram culpa no desenvolvimento de cenário que surgiu e se desenvolveu. A
Igreja Católica por não saber conduzir a questão, embora os motivos que a
provocaram, transcendessem as questões religiosas; os Reformadores, por terem
usado os motivos religiosos para conseguir a vitória final, unindo-se às razões
materiais dos governantes locais. Muitas das reivindicações levantadas eram
muito pouco importantes para terem as consequências e repercussão que tiveram.
Tal é o caso, por exemplo, de terem a Bíblia e os ofícios religiosos praticados
na própria língua dos seus países, algo que, mais tarde, até a própria Igreja Católica
veio a praticar espontaneamente. Nunca houve concordância entre os diversos
reformadores surgidos e logo as lutas internas iniciaram, sendo contestadas por
Lutero, o que de pouco adiantou; e logo surgiram os múltiplos ramos do
movimento. Mais do que isso, ostensivamente eles lutaram entre si e a maior
prova disso é que as várias ramificações da Reforma vingaram exatamente nos
países em que elas se originaram; só posterior e muito lentamente, cada uma
dessas facções foi conseguindo mais adeptos, em geral ainda descendentes
daqueles países.
Lutero e Zwingli,
por exemplo, lutaram ostensivamente entre si. O primeiro gesto aberto de
Zwingli contra um dos dogmas cristãos, foi comer salsichas durante a Quaresma
em 1522, marcando o início da Reforma suíça. Enfrentando menos oposição do que
Lutero enfrentara na Alemanha, conseguiu persuadir Zurich a aceitar a
avassaladora Reforma; mas como Lutero, logo foi também confrontado por
reformadores mais radicais do que ele próprio.
De forma geral,
praticamente todas as objeções inicialmente levantadas pelos reformadores
poderiam ter sido resolvidas pelas duas partes. Não foram porque outras
bandeiras, de ordem material – mas principalmente política, como consequência
do próprio Renascimento -, foram levantadas, pelos reformadores, que
interessavam sobremaneira aos governantes locais. A Igreja acumulou, ao longo
dos tempos, por força de doações para justos fins, um importante patrimônio que
causava inveja aos governantes dos feudos da época. A bandeira de
desapropriação de bens materiais e terras da Igreja caiu como uma luva às
pretensões dos poderosos e falidos senhores feudais daquela época. Com isso,
eles não apenas permitiram a cisão, como a estimularam, além de, muitas vezes,
obrigarem os seus súditos a abraçar as ideias da Reforma nos vários países onde
ela se desenvolveu. Basicamente, o poder feudal acabou por dominar a Reforma em
função dos bens da Igreja que passariam aos senhores feudais.
A grande verdade é
que a Reforma inflamou na Europa uma conflagração de violência sem paralelo.
Devastou a Cristandade ocidental por mais de um século, trazendo consigo
violento ódio e intolerância que, em algumas comunidades cristãs, perdura até
os dias de hoje. Nenhuma disputa, em qualquer outra religião, igualou a força
destrutiva, a brutalidade e amargura iniciada em Wittenberg em 1517. Apenas
como ilustração e como assunto para meditar, lembremos a Guerra dos Trinta
Anos, consequência mais distante da Reforma, que causou um número estimado
entre 3 e 11 milhões de mortos.
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