Era o sereno ano de 1952, em que eu vivia o meu oitavo ano de vida. Aquela vida maravilhosa que tem todo o menino de oito anos. Para um menino dessa idade não importa muito ser rico ou pobre, ter muito ou ter pouco, estar num colégio chique ou num pequeno Grupo Escolar da periferia, morar no bairro Moinhos de Vento ou no simples bairro do Partenon.
Eu era assim, um menino da classe média baixa, que morava no bairro Partenon, na cidade de Porto Alegre, às margens do rio Guaíba, distando uns seis quilômetros do centro da cidade, lugar aonde, naquele tempo, as pessoas iam apenas para fazer compras ou a um cinema mais fino ou, ainda, a um restaurante mais requintado. Sim, algumas pessoas até moravam no centro da cidade, que era considerado um lugar chique para morar, com imóveis muito valorizados para compra e aluguéis bem acima da média. Fora do centro ficavam apenas os bairros, uns mais simples, outros mais elegantes. O Partenon era um dos bairros mais simples de Porto Alegre e eu morava numa das ruas mais simples do Partenon, a rua Humberto de Campos, sem calçamento, numa pequena casa de madeira, verde, com o número 180. Numa das esquinas dessa rua com a Av. Bento Gonçalves, localizava-se a “Nova Petisqueira”, uma espécie de bar, restaurante, padaria e armazém, cujos proprietários eram dois portugueses muito amigáveis. A rua começava com um trecho plano de uns 100 metros e então apresentava um trecho em aclive, com cerca de 150 metros, seguido por novo trecho horizontal, desta feita, bem mais longo, até encontrar o grande trecho em aclive que acabava em outro bairro. Nossa casa ficava mais ou menos na metade da primeira subida. E este era o nosso pequeno mundo da época.
Bem, na verdade havia mais mundo. Para estudar, eu frequentava às aulas do pequeno Grupo Escolar Otávio Rocha, situado na Av. Bento Gonçalves, à cerca de uns 300 metros da minha rua, onde, naquela época, a gente podia, tranquilamente, ir a pé, sozinho, todas as manhãs. Eu cursava então o terceiro ano do curso primário (acho que hoje é chamado de elementar) e a minha professora era a bondosa Dona Célia.
Aos oito anos de idade uma criança não se lembra de tudo, mas apenas guarda na lembrança algumas poucas coisas que mais lhe marcaram a vida. E Eloá – simplesmente Eloá porque nunca lhe soube o sobrenome - foi uma dessas, razão por que nunca a esqueci. Ela era pequena e era tímida, como eu. Mas era linda nos seus oito anos! O que mais me atraía a ela, eram os seus lindos olhos amendoados que me faziam dizer aos meus pais, em casa, que ela se parecia com uma chinesinha. Mas isso eu não dizia a ela, talvez até me imaginasse lhe dizendo, mas guardava apenas para mim. E como éramos muito pequenos e tímidos, nada nos dizíamos; mas às vezes nos olhávamos, com aqueles olhares fugidios de crianças de oito anos. E eu a amava à minha maneira, penso, como uma criança de oito anos é capaz de amar a outra. E nas minhas fantasias inocentes, imaginava que ela me amasse também, que havia uma reciprocidade da sua parte. Assistíamos juntos às nossas aulas, brincávamos juntos nos recreios, eu acho; e nada mais.
Mas tenho dela duas lembranças muito vívidas. Na semana da Pátria era costume fazer com que os escolares de todas as idades participassem das solenidades patrióticas. Entre outras, tais atividades incluíam o transporte da tocha acesa, de uma escola para a outra, para inflamar a pira da Pátria, que permanecia acesa durante toda a semana. Pois bem, para a minha fortuna, naquele ano eu fui escolhido para transportar a tocha da escola que ficava antes da nossa, na ordem selecionada, para inflamar a pira do Otávio Rocha. Eu estava muito orgulhoso, no meu uniforme todo branco de educação física – tênis, meias, calção e camiseta de física, tudo branquinho e impecável - e vi, ao chegar à escola, Eloá esperando para me ver passar correndo com a tocha na mão, em seu guarda-pó branco, igualmente impecável, à entrada da escadaria que conduzia à pira. Poucas vezes fiquei tão feliz em minha vida! Naquele momento eu era o herói da escola, o seu representante, e Eloá presente, estava me assistindo e vibrando por mim, mesmo que eu tivesse que subir numa cadeira, na hora de inflamar a pira, porque ela era muito alta para mim!
Finalmente chegou a oportunidade da minha vida, quando a Dona Célia resolveu encenar, em nossa classe, a história do “Chapeuzinho Vermelho”. Os personagens seriam uma meia dúzia de alunos – a Chapeuzinho, a sua mamãe, o Lobo Mau, a sua vovó e os caçadores; os restantes seriam espectadores. Eloá foi selecionada como Chapeuzinho Vermelho e eu fui selecionado como um dos caçadores que a salvariam, e à sua vovó, das garras do Lobo Mau. Foi ali que eu tive a grande chance de mais me aproximar dela e, mais do que isso, ser o seu salvador; nunca lutei tão bravamente, em minha vida, como naqueles dias de ensaio e de apresentação da peça, para salvar a minha Eloá das garras do Lobo Mau. Até hoje a vejo no seu casaco e capuz vermelho, alegremente caminhando pela floresta para levar os bons doces que a sua mamãe fazia para a sua vovozinha. E nunca esqueci das canções que ela cantava, bem como de todas as demais. Realmente foram os meus dias de glória.
Isso foi quando tínhamos oito anos. Quando então aos trinta anos, já casado e com família constituída, precisei um dia ir apanhar uns documentos num dos órgãos que antecederam ao atual INSS (foram tantos que não lembro mais o nome, mas talvez tenha sido o IAPI). Naquela ocasião, eu estava sendo atendido por uma moça e notei, mais ao fundo e meio às ocultas, uma moça dizendo a outra: “Olha, aquele lá é o meu antigo coleguinha de Otávio Rocha e meu namoradinho”. Mas ela não se atreveu a vir até mim e eu, que então a reconhecera, não fui tão bravo como no tempo do Lobo Mau, para chama-la e conversarmos, depois de tanto tempo sem nos vermos. Nem para dizer que a reconhecera e que tinha muita vontade de falar com ela, tomar um café ou qualquer coisa assim. E esse foi o nosso último “encontro”. Nunca mais a vi de novo, até hoje!
E então, finalmente, hoje, eu voltei a encontrar a Eloá! No meu sonho! Mas foi um sonho tão real, mas tão real, que foi como se fosse a mais concreta realidade. Ela não tinha os meus setenta anos, ou perto, mas também não era a menina de oito anos que eu conheci e abandonei, mas nunca esqueci. Ela deveria ter uns quarenta anos, e a minha idade não fez parte do sonho, não era, nele, algo importante. A única coisa importante nele era a Eloá, embora, para a minha maior satisfação e alegria, ela tivesse sentido enorme prazer em ter-me reencontrado. Afinal, um sonho é sempre um sonho ...!
No sonho, eu estava numa espécie de saguão de um grande hotel, um amplo saguão com enormes poltronas e sofás espalhados pelo fino piso de cerâmica vitrificada, recoberto aqui e lá por legítimos tapetes persas de todos os tamanhos. Lembro também que havia, num canto mais retirado, um conjunto de mesas, ricamente decoradas, onde os hóspedes podiam ter alguma refeição leve ou alguma bebida e, de fato, algumas estavam ocupadas e servidas. Era um hotel de luxo, sem dúvida alguma.
Eu estava sentado numa enorme e confortável poltrona, voltada para a porta de entrada principal, lendo um jornal local. Distraído pelos passos de alguém, levantei a cabeça da minha leitura e enxerguei uma jovem senhora, linda, calmamente caminhando na minha direção e me olhando, com determinação, como se estivesse indo ao meu encontro, com a certeza de que me encontraria ali. Um som ambiente tocava uma conhecida melodia que eu adoro, “Isn’t it Romantic?”, orquestrada, muito adequada ao ambiente do hotel. A jovem senhora portava um vestido verde escuro, discretamente lindo, sem decote, mas com alguns recortes desenhados, acima do busto, e tinha apenas os joelhos à mostra, como convém a uma jovem senhora. O penteado era simples, preso para cima, numa figura que, de repente, me lembrou a Audrey Hepburn, com a diferença de que era muito mais bonita do que a atriz. Calçava um sapato simples, mas fino e discreto, com salto que não era muito alto, embora ela também não fosse muito alta. Deu para perceber que, logo que entrou e à medida que avançava, ia tirando do rosto os óculos de sol, o que me permitiu enxergar claramente o seu rosto bonito.
E comecei a achar a situação um tanto estranha, porque à medida que ela avançava na minha direção, ela me olhava fixamente e, vendo que eu a enxergara, lentamente começou a esboçar um tímido e lindo sorriso, que se ampliava à medida que de mim se aproximava. E eu, completamente incrédulo, comecei a acreditar de quem se tratava! O mesmo feitio de rosto, a mesma boca, o mesmo nariz e, principalmente, aqueles mesmos olhos amendoados que a mais de 60 anos haviam cativado o meu coração. Era, com certeza, a minha querida Eloá! Quando ela estava a uns três metros de mim, eu levantei da poltrona, em sua direção, ainda sem acreditar, boquiaberto, e sem saber o que dizer apenas consegui falar:
- Eloá?!
Ao que ela apenas respondeu:
- Nelson!
E ficamos apenas nos olhando, por alguns muitos segundos, como se estivéssemos tentando resgatar naquele tempo, os mais de sessenta anos que nos separaram do nosso último encontro. E então ela falou:
- Nelson, há mais de trinta anos não nos encontramos!
Ao que eu respondi:
- Mas não são trinta, Eloá, são sessenta anos!
O que me pareceu bastante estranho, pois eu sabia que eram mais de sessenta de anos. Mas os sonhos são sempre assim, com muitas coisas que não fecham, que não coincidem com a realidade. E então, na velocidade do pensamento, apenas, primeiro percebi que Eloá, realmente, não aparentava ter os mesmos setenta (ou próximo disso) anos que eu tenho, mas apenas os quarenta que mencionei, o que justificava ela dizer que apenas há trinta não nos víamos. Depois, lembrei do “encontro” que, após o tempo do colégio, tínhamos tido, por acaso, no seu local de trabalho. Com isso, as misturas dos sonhos com a realidade também já ficavam um pouco mais coerentes pois isso nos distanciava de “apenas” uns quarenta anos. E no sonho, eu então lhe perguntei:
- Posso te dar um abraço?
Ao que ela respondeu com muita convicção e reciprocidade:
- Claro, Nelson, eu quero muito receber esse abraço!
E eu a abracei, o abraço mais terno, calmo e prolongado que já dei em alguém, desejando e esperando que aquele abraço durasse para sempre. E o abraço que tive de volta, foi igualmente terno, o mais doce que já recebi. E, finalmente, nos separamos, os dois relutantes, e ficamos novamente a nos mirar, como se, com o olhar recíproco, conseguíssemos recuperar todos os anos passados.
Lembro de ainda ter perguntado a ela:
- Eloá, por onde andaste todos esses anos? Eu te procurei por todos os lugares e nunca tive uma só noticia tua!
E ela estava se afastando, em direção àquelas mesas que estavam ocupadas e ainda a escutei queixar-se:
-Ahhh, Nelson, eu andei por muitos lugares e tive muitas aventuras, mas as pessoas me trataram muito mal.
E como se sofresse, indicava por gestos as partes do seu corpo, que ainda lhe causavam dor; eu não entendia o que ela queria dizer com aquilo e não tinha como consolá-la.... E, de repente, o sonho não tinha mais palavras e não havia mais sonho a sonhar. E uma névoa surgiu do nada, tênue no início, e então cada vez mais pesada. E assim como Eloá tinha vindo, mais linda do que jamais a vira, assim ela se foi de mim e eu nada pude fazer, além de sentir uma profunda tristeza ...
Mas reencontra-la, mesmo que em sonho, foi algo maravilhoso! Foi uma sensação muito estranha a que senti ao despertar. Foi como se eu tivesse cumprido o objetivo final da minha vida e agora pudesse, finalmente, descansar. Uma clara ideia de pressentimento, coisa que nunca havia sentido até hoje. Vou esperar para ver o que o futuro me reserva. Mas haja o que houver, o sonho terá valido à pena porque, finalmente, após tantos, voltei a encontrar o meu “Chapeuzinho Vermelho”, a minha querida Eloá dos meus oito anos!
PS: À Eloá, na esperança de que ela retorne, um dia ...
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