Homenagem ao lendário herói ancestral dos ingleses que deu título a um dos considerados "Cem Maiores Livros do Mundo" e tido como o mais antigo escrito em "Old English".

terça-feira, 20 de outubro de 2015

PEER GYNT: O POEMA DRAMÁTICO E A MÚSICA INCIDENTAL (PARTE 1/2)

I – INTRODUÇÃO

E então, para tornar mais amena a vida dos meus leitores, vamos, simultaneamente, a um pouco de literatura e música.
Esta postagem teve início num calmo domingo de outubro de 2015, quando eu começava a leitura de “Peer Gynt”, um poema dramático do norueguês Henrik Ibsen, considerado um dos cem maiores livros do mundo[1]. Lembrei-me, imediatamente, da composição musical “Peer Gynt”, do também norueguês Edvard Grieg, que eu adoro por razões muito evocativas do tempo em que, junto com minha família, passei quatro maravilhosos anos - por um lado, mas duríssimos pelas agruras do curso de doutorado, pelo outro – nos Estados Unidos, na cidade de Fort Collins, estado do Colorado. Naquela época, em geral pela manhã, bem cedo, para melhor aproveitar o tempo, eu pedalava da Vila Universitária onde morávamos até o campus principal da Colorado State University, onde assistia à maioria das minhas aulas. Situada ao pé das Montanhas Rochosas, o local era muito frio, com temperaturas que atingiam 25ºC abaixo de zero. Eu me agasalhava muito bem, com luvas pesadas e gorro, que deixava aberto apenas uma viseira para que eu pudesse enxergar, colocava um toca-fitas (ainda naquele tempo) na cintura e punha a tocar uma fita com os quatro movimentos da Suite No 1 de Grieg, e me deliciava, principalmente com o primeiro deles, “Morning Mood” (uma espécie de “Humor Matinal”), contemplando a neve nas Montanhas Rochosas, sem me importar em nada com o terrível frio que fazia. Nunca mais esqueci aquela composição! E então resolvi convidar os meus leitores a entenderem a relação entre as duas obras, ambas maravilhosas, através desta postagem que agora publico.

II – O POEMA

II.1 – O AUTOR
A atual cidade de Skien, a sudeste da Noruega, não muito
distante da capital Oslo, berço do escritor Henrik Ibsen.

Henrik Ibsen (20/03/1828 – 23/05/1906), nascido em Skien, Noruega, e filho mais velho (de cinco) do mercador norueguês Knud e da pintora Marichen Ibsen, foi um importante dramaturgo, diretor de teatro e poeta norueguês. É muitas vezes referido como “o pai do realismo” e um dos fundadores do Modernismo no teatro. Ibsen é o dramaturgo mais frequentemente encenado no mundo após Shakespeare e sua obra “Casa de Bonecas” (A Doll's House) tornou-se a peça mais encenada, a nível mundial, pelo início do século XX. Vários de seus últimos dramas foram considerados escandalosos para muitos de sua época, quando se esperava que o teatro europeu servisse de modelo à moral estrita da vida e propriedade familiar. O trabalho final de Ibsen examinou as realidades que se escondiam atrás de muitas fachadas, revelando muito do que inquietava à maioria de seus contemporâneos. Utilizou um olho crítico e investigação livre nas condições de vida e questões de moralidade. Ibsen é classificado como um dos verdadeiramente grandes dramaturgos da tradição europeia e influenciou dramaturgos do nível de George Bernard Shaw, Oscar Wilde, Arthur Miller, James Joyce, Eugene O’Neill, entre outros. Foi indicado para o Prêmio Nobel de Literatura em 1902, 1903 e 1904.
O dramaturgo e poeta Henrik Ibsen retratado
por Gustav Borgen
Seu pai sofreu reveses financeiros durante a infância do menino, obrigando-o a tornar-se aprendiz de farmacêutico, com a idade de 15 anos, onde trabalhou durante seis anos, usando o seu tempo vago para a poesia e a pintura. Em 1850, Ibsen mudou-se para Christiania (hoje Oslo, a capital da Noruega) com a intenção de estudar na Universidade de lá, mas logo abandonou a ideia para dedicar-se à literatura. Sua primeira peça, “Catilina” (1849) ou "Catiline", despertou pouco interesse, mas a segunda, “The Burial Mound” (1850) ou "Túmulo de Gigantes" ou "O Tumulus" ou "Túmulo do Guerreiro", foi encenada, com sucesso. Obteve postos de produtor e dramaturgo residente em teatros de Bergen e Christiania, sucessivamente, mas suas políticas no segundo posto foram muito criticadas e em 1864 ele embarcou num longo período de exílio, auto imposto, no exterior, com sua esposa Suzannah Daae Thoresen e seu único filho Sigurd. O reconhecimento do verdadeiro gênio de Ibsen veio após a publicação, em 1866, do poema dramático “Brand”, quando finalmente recebeu uma subvenção anual do Parlamento Norueguês para devotar-se à literatura.
Em 1867 Ibsen criou uma de suas obras de arte, “Peer Gynt”. De 1868 a 1891 viveu principalmente em Dresden, Munich e Roma, e durante este período escreveu a maior parte das peças em prosa que lhes granjearam sua reputação europeia. Entre elas, destaca-se “Uma casa de Bonecas” (A Doll’s House), um de seus trabalhos mais famosos, escrito em 1879. Com “Hedda Gebler”, de 1890, Ibsen criaria um dos mais famosos personagens de teatro. Voltou a viver na Noruega em 1891, como um herói da literatura, e seu 70º aniversário, em 1898, foi ocasião de celebrações nacionais. Em 1899 ele escreveu seu último drama “When We Dead Awaken” (Quando despertamos Dentre os Mortos), que ele chamou um epílogo dramático e seria também o epílogo do trabalho da sua vida.
Sua carreira literária encerrou-se por um derrame, em 1900, e ele resistiu até 23 de maio de 1906, quando morreu em sua casa de Arbins Gade, em Oslo, e foi enterrado no “Cemitério de Nosso Salvador”, no centro da capital norueguesa. Considerado um ícone literário ao tempo de sua morte, Ibsen recebeu funerais públicos do governo norueguês.

II.2 – A OBRA

Peer Gynt - Capa da Edição de 1989
da Oxford University Press
É surpreendente que, uma obra tão tipicamente norueguesa em sua inspiração, Peer Gynt tenha sido totalmente escrita sob céus estrangeiros e, para tal grandiosidade, tendo em vista o seu gênero, escrita, impressa e publicada em um só ano do calendário, 1867. Ibsen havia avisado seu editor que se tratava de um poema dramático de grande escala, tendo como personagem principal uma daquelas figuras semi-mitológicas do domínio público de um passado recente. No início de agosto, com os primeiros três atos (de cinco) completos, ele enviou o material para impressão antes que os dois últimos atos estivessem ainda adequadamente rascunhados. Estes foram escritos em Sorrento e enviados ao seu editor de Copenhagen, em 18 de outubro. O trabalho completo foi publicado em 14 de novembro de 1867. Em forma de livro foi um sucesso comercial dentro da Escandinávia; a primeira edição foi praticamente esgotada no dia da publicação, a segunda saiu em duas semanas e ao final do século, havia atingido a sua 11ª edição. Contudo, como acontece com frequência, a crítica pesada foi devastadora, alguns dizendo que o trabalho não poderia sequer ser chamado de poesia e outros repudiando como “nem lindo, nem verdadeiro”, exigindo que Ibsen cessasse de “denegrir a raça humana”. O autor reagiu fortemente, mas foi a última vez que Ibsen usou o verso como forma de expressão dramática, passando a usar a prosa em suas “peças problemas”.
Em seu trabalho, a métrica mais regular foi muito modificada para um padrão métrico mais livre, lembranças das canções populares e baladas de poesia. A rima, algo dela muito audaciosas e espirituosa, foi sempre mantida, exceto para a oração fúnebre do último ato, feita em verso branco.
O conhecimento literário é assíduo em afirmar que são várias as fontes – lenda, mito, conto folclórico, trabalhos de literatura e a vida real - utilizadas por Ibsen para a composição de Peer Gynt. Contudo, fica muito claro que a mais importante fonte utilizada para a construção do trabalho, foi a sua própria independente e criativa imaginação. Da lenda, apenas teria saído o nome do personagem principal: um homem que, supostamente, ainda vivia na memória campesina no vale de Gundbrandsdal que, segundo cria Ibsen, ainda devia viver no início do século. Da tradição oral popular, Ibsen tinha muita familiaridade com duas passagens de uma coleção de contos de fadas e populares de Asbjornsen: uma delas contava as proezas de um exibido caçador e a outra a história de um caçador que perseguira uma rena ferida por um longo caminho através de cumes de montanhas e geleiras antes de, finalmente, matá-la com sua faca. Há também alguns antecedentes literários que vão desde o Fausto, de Goethe, e Oehlenschläger, a Vergeland e Hans Andersen. Contemporâneos pessoais, incluindo amigos e conhecidos, figuras públicas e políticos, bem como outros escritores, frequentemente forneceram matéria prima para a imaginação de Ibsen trabalhar. Finalmente e difusamente, haviam as memórias de sua própria existência juvenil. 
Henrik Klausen como Peer Gynt, 1876 
O mundo que Peer Gynt habita é um mundo de assustadora fluidez de transformações sem esforço e desconcertantes transposições. Para Peer, a jornada de retorno da realidade para a fantasia e volta, da substância para a sombra e retorno, não requer formalidades de fronteiras. Trabalho e sonho se interpenetram, fato e fantasia se fundem e toda as distinções são obscuras. A linha entre aparência e realidade, ficção e fato, desaparece em um grande universo da imaginação. Os medos são regenerados apenas como pesadelos podem moldá-los; os desejos são alcançados como somente os sonhos podem preenche-los. As frustrações de um momento tornam-se as realizações do momento seguinte. Se as garotas do casamento da vila o rejeitam, as meninas da montanha são ardentes e dispostas. Repudiado e rejeitado como litigante pela comunidade local num dia, ele é saudado como um potencial genro pela sociedade escandinava no dia seguinte. Como sua mãe Aase sabe muito bem, Peer é intoxicado por “faz-de-conta” como outros homens o são por bebida. O seu é um mundo em que desejos são cavalos (ou, se não tiver, porcos!) e os esmoleres os cavalgam. As coisas, ele descobre, acontecem tão logo são pensadas. Para ele, terras distantes são apenas um sonho próximo. Mundos de fantasia simulam o mundo real e o real engendra o fantástico. Tudo é um aspecto de um só continuum de realidade/fantasia, onde o fato é uma função da ficção, invenção da experiência e mentiras e vida são apenas uma só coisa. 
Carta de Ibsen a Grieg, de 23/01/1874
Alguns estudiosos sustentam que este poema dramático (somente um seu outro trabalho, “Brand", recebeu do autor este título) não teria sido, originalmente, escrito para ser encenado, mas apenas para ser lido. Entretanto, Ibsen começou logo a ponderar sobre a possibilidade de uma produção teatral. Sabendo que a obra era muito longo, inicialmente pensou em cortar todo o ato IV e substituí-lo por uma espécie de poema sinfônico para representar as andanças de Peer Gynt pelo mundo, de maneira que melodias de vários países pudessem ser ouvidas como temas variando e diminuindo. Escreveu a Edvard Grieg, com detalhe, sobre o que pretendia. Grieg aceitou a incumbência, mas, compreensivelmente, mudou os detalhes. O trabalho foi apresentado pela primeira vez em 24 de fevereiro de 1876, com a música de Grieg como a conhecemos hoje.
Posteriormente, a obra teve várias produções para o cinema e para a televisão, além do teatro. Como curiosidade, no cinema, alguns anos antes de se tornar uma celebridade, aos 17 anos Charlton Heston interpretou Peer Gynt, numa produção de 1941, feita por estudantes e com baixo orçamento. 

[1] Sobre o assunto, buscar a postagem “Os Maiores Livros do Mundo”, publicada em meu “blog” Beowulf, (http://nsantanna.blogspot.com.br/), em 12 de janeiro de 2009.

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