Homenagem ao lendário herói ancestral dos ingleses que deu título a um dos considerados "Cem Maiores Livros do Mundo" e tido como o mais antigo escrito em "Old English".

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

BILITIS


INTRODUÇÃO

O objetivo da postagem é a canção intitulada “Bilitis”, mais uma das minhas grandes preferidas. Entretanto, como se trata de trilha sonora de um filme, que por sua vez foi baseado num livro, sou obrigado, para bem informar o leitor, a abordar as três matérias.
Não sei se já escrevi em alguma de minhas postagens, mas li, em alguma publicação que tratava de música clássica, que se os grandes compositores clássicos fossem vivos, eles comporiam trilhas sonoras para cinema. Nunca esqueci disso e conheci muitas músicas lindas, que realmente me tocavam, que foram especificamente criadas para o cinema. Esta é apenas mais uma delas.

O FILME

O filme “Bilitis”, de 1977, é um drama romântico e erótico francês, dirigido pelo fotógrafo David Hamilton, com trilha sonora do mais que mundialmente conhecido Francis Lai, autor de, entre outras, “Love Story”, “Un Homme et une Femme” e “Vivre pour vivre”. São estrelas do filme, Patricia (Patti) D’Arbanville e Mona Kristensen, repectivamente nos papeis título Bilitis e Melissa.
No enredo, uma estudante adolescente (Bilitis) é aluna de uma escola só para meninas que está prestes a iniciar a interrupção para as férias de verão. Durante essas férias, Bilitis vê-se às voltas com sua sexualidade em desenvolvimento e inicia um relacionamento com um casal cujo casamento é já inamistoso, desenvolvendo uma intensa paixão lésbica pela esposa, sua guardiã. Ao mesmo tempo ela busca relações amorosas com um adolescente local (Lucas) e procura encontrar um adequado amante masculino para a esposa.
Embora “Bilitis” possa ser descrito como um filme com personagens que estão por atingir a idade adulta, a personagem do título, Bilitis, acaba por retornar à escola ao final do filme, percebendo que ainda não está pronta para tornar-se adulta.
Esse filme de 1977, é uma versão a cores do mesmo filme feito na França em 1959 que está, há muitos anos, sem possibilidades de cópia.
O filme é livremente baseado num livro de poemas de Pierre Louÿs, chamado “As Canções de Bilitis” (Les Chansons de Bilitis), encenado na antiga Grécia, embora o filme aconteça na moderna Europa.

O LIVRO

Ilustração de George Barbier para o
livro "Les Chansons de Bilitis" 
O livro “As Canções de Bilitis” (Les Chansons de Bilitis) é uma coleção de poemas eróticos, essencialmente lésbicos, pelo poeta francês Pierre Louÿs, publicado em Paris em 1894. Propositalmente, Louÿs alegou que havia traduzido a poesia original do grego antigo quando, na verdade, os poemas foram inteligentes fábulas criadas por ele mesmo e são, ainda hoje, considerados importante literatura.
Pierre Louÿs, nascido Pierre Félix Louis, foi um poeta e escritor francês, nascido em 10 de dezembro de 1870, em Ghent, Bélgica, mas relocado para França onde viveu o resto da sua vida, principalmente renomado por temas lésbicos e clássicos em alguns dos seus escritos. Conhecido como o escritor que procurou “expressar a sensualidade pagã com perfeição estilística”, foi inicialmente feito Cavaleiro e então Oficial da Legião de Honra, por suas contribuições à literatura francesa.
Estudou na École Alsacienne, em Paris, onde desenvolveu uma boa amizade com o futuro vencedor do Prêmio Nobel e campeão dos direitos homosexuais, André Gide. A partir de 1890 passou a escrever seu nome como “Louÿs” como forma de expressar seu apego à cultura grega clássica (a letra “Y”, em francês, é chamada de “i grega”). Durante os anos 1890’s tornou-se amigo do dramaturgo irlandês homosexual Oscar Wilde e foi o dedicado da edição francesa do “Salomé” de Oscar Wilde. Outro importante amigo de Louÿs, o compositor clássico Claude Debussy, compôs uma adaptação musical de três dos poemas de seu “Chansons de Bilitis” para voz e piano, entre 1897 e 1898. 

Retrato de Pierre Louÿs
Os poemas seguem o estilo de Sappho [1] e a introdução da coletânea alega que os poemas foram encontrados nas paredes de uma tumba em Chipre, escritos por uma mulher da Grécia antiga, chamada Bilitis. Era uma cortesã contemporânea de Sappho, a quem Louÿs, para emprestar credibilidade à falsificação, dedica uma pequena seção do livro, chamada “A Vida de Bilitis”, creditando a um arqueólogo alemão ficcional a descoberta da tumba de Bilitis. Quando de sua publicação, o livro iludiu até mesmo grandes estudiosos do assunto.

A MÚSICA

A música conhecida por “Bilitis” é, na verdade, uma das composições da maravilhosa trilha sonora do filme, chamada “Générique”, toda composta por Francis Lai, um dos mais importantes compositores de trilhas sonoras do mundo.
Fotografia de Francis Lai em 1972
Francis Albert Lai foi um compositor francês, de Nice, nascido em 26 de abril de 1932, exaltado por suas trilhas sonoras para o cinema. Filho de jardineiros que plantavam para venda de mercado, desde tenra idade foi fascinado pela música, inicialmente tocando em suas orquestras regionais. Em Marseille ele descobriu o jazz e se encontrou com Claude Goaty, um cantor de canções populares dos anos 1950’. Em seus vinte anos, Lai deixou o seu lar acompanhando Goaty a Paris, onde tornou-se parte do vivo cenário musical de Montmartre. Com Bernard Dimey escreveu sua primeira composição, numa parceria que renderia mais de cem músicas. Após um curto período com a orquestra de Michel Magne, tornou-se um acompanhador para Édith Piaf, para quem também acabaria compondo.
Em 1965 ele conheceu o diretor Claude Lelouch e foi contratado para a trilha sonora para o filme “Um Homme et une Femme” (Um Homem e uma Mulher), liberado em 1966, um sucesso internacional que lhe rendeu uma indicação para “Melhor Trilha Sonora Original”. Continuou a trabalhar com Lelouch em trilhas sonoras de filmes como “Vivre pour Vivre” (1967), “Un Homme qui me plait” (1969), “Le Voyou” (1970), “O Passageiro da Chuva” (1970) e “La Bonne Anné” (1973), para citar alguns. Em 1970, ainda, Lai venceu o Oscar de Melhor Trilha Sonora Original e o Globo de Ouro para o filme “Love Story”. Em 1975 compôs a trilha sonora de “Emmanuelle” e em 1977 para “Bilitis. Numa carreira que durou mais de 40 anos, Lai também escreveu música para programas de TV e em colaboração com outros, compôs música para mais de cem filmes, pessoalmente escrevendo mais de 600 canções.
Francis Lai morreu em 7 de novembro de 2018, com a idade de 86 anos.
Há um álbum com a trilha sonora completa do filme, chamado “Bilitis – Música por Francis Lai”, que nos agracia com todas as partes que a compõem e nos permite observar que a melodia de “Bilitis” (Générique), como geralmente acontece, permeia várias das suas componentes.
Existem algumas versões diferentes de Bilitis, e eu gostaria de apresentar três delas, que considero indispensáveis à nossa postagem. Procurei muito e não encontrei qualquer versão letrada; creio mesmo que, em se tratando de trilha sonora e de um filme com tal história, seja natural que Francis Lai a tenha composto, propositalmente, sem letra.
Por questão de mérito, gostaria que a primeira delas fosse a “Bilitis” (Générique) que abre a trilha sonora original do filme, primeira música do álbum com a trilha sonora completa do filme, “Générique (de Bilitis)”.
Considerando que a composição não tenha letra, gostaria de apresentar a versão, não cantada, mas murmurada, por uma das minhas cantoras favoritas, Sarah Brightman. É uma inovação que vale à pena degustar.
E a terceira versão que eu gostaria de apresentar, para o deleite dos leitores, é a gravação com a orquestra de Franck Pourcel, mundialmente conhecida e uma das minhas preferidas.
Espero que os leitores apreciem a música escolhida para esta postagem, mais uma composição de Francis Lai, com toda a delicadeza que o filme exigiria.


[1] Sappho foi um poeta grego antigo de Eresos ou Mytilene, na ilha de Lesbos, conhecido por sua poesia lírica, escrita para ser cantada acompanhada por música. Nos tempos antigos, Sappho foi amplamente visto como um dos maiores poetas líricos.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

CHARLEMAGNE OU CARLOS MAGNO
(Parte 4 de 4)

VIII - ADMINISTRAÇÃO

1 - Organização

O rei Carolíngio exercia o "bannum", direito de governar e comandar. Sob os francos, era uma prerrogativa real que podia ser delegada. Ele tinha jurisdição suprema em questões judiciais, legislativa, conduzia os exércitos e protegia a Igreja e os pobres. Sua administração era uma tentativa para organizar o reino, a Igreja e a nobreza em seu entorno. Como administrador, Carlos Magno se sobressaiu pelas várias reformas que realizou: monetária, governamental, militar, cultural e eclesiástica, tornando-se o principal protagonista do “Renascimento Carolíngio”.

2 - Militar

O sucesso de Carlos Magno residiu, principalmente, em novas tecnologias de cerco e excelentes logísticas, antes da tão aclamada revolução na cavalaria liderada por Carlos Martelo nos anos 730. Contudo, o estribo, que tornou a carga da cavalaria de choque dos lanceiros possível, não foi introduzido no reino franco até o final do século VIII.
Os cavalos foram usados extensivamente pelos militares francos porque eles proporcionavam um longo e rápido transporte das tropas, fator crítico para construir e manter o vasto império.

3 - Reformas Econômicas e Monetárias

Carlos Magno teve um importante papel na determinação do futuro econômico imediato da Europa. Prosseguindo com as reformas de seu pai, ele aboliu o sistema monetário baseado no "sou" (antiga moeda francesa) de ouro, adotando, junto com o rei Anglo-Saxão Offa, de Mercia, o sistema de Pepino, por razões pragmáticas, principalmente uma carência do metal. Tal carência ocorreu como uma consequência direta da conclusão da paz com o Bizâncio, que resultou na cessão da Veneza e Sicília ao oriente e na perda de suas rotas de comércio para a África. A padronização resultante harmonizou e uniu, economicamente, o complexo arranjo de moedas que tinha estado em uso no início do seu reino, assim simplificando o comércio. 
Um denarius de Carlos Magno, com a inscrição latina
KAROLVS IMP AVG (Karolus Augusto Imperador)
cerca de 812–814.

Carlos Magno estabeleceu um novo padrão, a libra carolíngia (do latim libra, a libra moderna), baseada em uma libra (aproximadamente 454g de peso) de prata – uma unidade, ao mesmo tempo, de dinheiro e peso – valendo 20 sous (do latim "solidus", o moderno shilling) ou 240 deniers (do latim "denarius", o moderno penny). Durante este período, a libra e o sou foram apenas unidades de cálculo; somente o denier foi uma moeda do reino (cunhada). Carlos Magno instituiu princípios para a prática de contabilidade por meio do texto “Capitulare de Villis”, de 802, que estabelecia regras rígidas para o registro de receitas e despesas. Aplicou tal sistema a grande parte do continente europeu e o padrão de Offa foi voluntariamente adotado por grande parte da Inglaterra. Após a morte de Carlos Magno, a cunhagem continental foi degradada e a maioria da Europa recorreu ao uso da permanente moeda inglesa de alta qualidade até cerca do ano 1100.

4 - Judeus no Reino de Carlos Magno

No início de seu comando, Carlos Magno tacitamente permitiu aos judeus monopolizar o empréstimo financeiro a juros, que viria a ser proscrito em 814 porque violava a lei da Igreja. Carlos Magno introduziu o “Capitulário para os Judeus”, uma proibição aos judeus de se engajarem no empréstimo de dinheiro a juros, uma determinação oposta à sua política geral anterior. Além dessa importante modificação, Carlos Magno também realizou um número significativo de reformas microeconômicas, como o controle direto de preços e a taxação de certos bens e mercadorias.
Seu “Capitulário para os Judeus”, entretanto, não foi significativo em sua relação ou atitude econômica geral para com os judeus francos e certamente não em sua relação inicial com eles, que evoluiu ao longo da sua vida. Seu médico pessoal, por exemplo, era judeu assim como Isaac, seu representante pessoal junto ao califado muçulmano de Bagdá. Cartas atribuídas a ele, convidavam os judeus a se estabelecer em seu reino.

5 - Reformas na Educação

Parte do sucesso de Carlos Magno como guerreiro, administrador ou soberano, pode ser devida à sua admiração pelo aprendizado e a educação. Seu reino é muitas vezes referido como “Renascimento Carolíngio” por causa do florescimento da educação, literatura, arte e arquitetura que o caracterizou. Carlos Magno entrou em contato com a cultura e o aprendizado de outros países (especialmente a Espanha moura, a Inglaterra anglo saxã e a Itália lombarda) devido às suas amplas conquistas. Ele aumentou, de forma substancial, a provisão de escolas monásticas e os centros de cópias de livros na França.
Era um amante dos livros que muitas vezes lhe eram lidos durante as refeições. Admirava os trabalhos de Santo Agostinho e sua corte representou um papel chave na produção de livros que ensinavam o latim elementar e diferentes aspectos da Igreja. Teve também papel importante na criação de uma biblioteca real que continha trabalhos profundos sobre a linguagem e a fé cristã.
Carlos Magno encorajou os clérigos a traduzirem credos e orações em seus respectivos vernáculos, bem como a ensinarem gramática e música. Devido ao interesse crescente na busca intelectual e ao estímulo de seu rei, os monges produziram tanta cópia que quase todo o manuscrito daquele tempo foi preservado. Ao mesmo tempo e pela mesma razão, os estudiosos produziram mais livros seculares em vários assuntos que incluíram história, poesia, arte, música, lei e teologia, entre outros. Devido ao crescente número de títulos, as bibliotecas particulares floresceram, principalmente mantidas por aristocratas e religiosos com possibilidade de sustentá-las. Na corte de Carlos Magno, uma biblioteca era criada e um número de cópias de livros era produzida para ser distribuída pelo imperador, lentamente, a mão, principalmente em grandes bibliotecas monásticas. A demanda pelos livros era tal que tais bibliotecas podiam emprestá-los, desde que os tomadores oferecessem uma contrapartida valiosa como compensação.
Muitos dos trabalhos de latim clássico preservados foram copiados e mantidos por sábios carolíngios. De fato, os mais antigos manuscritos disponíveis para muitos textos antigos, são carolíngios, sendo quase certo que todo texto que sobreviveu à idade Carolíngia, ainda sobrevive.
A natureza pan-europeia da influência de Carlos Magno é indicada pelas origens de muitos dos homens que trabalharam para ele, oriundos de vários países da Europa. Carlos Magno promoveu as artes livres em sua corte, ordenando que seus filhos e netos fossem bem-educados e mesmo ele, estudando (num tempo em que líderes que promoviam educação, não tinham tempo para aprender) sob a tutela de Peter de Pisa, com quem aprendeu gramática, Alcuin, com quem estudou retórica, dialética (lógica) e astronomia (ele era particularmente interessado nos movimentos das estrelas); e Einhard, que lhe ensinou aritmética.
Seu grande fracasso escolar foi sua inabilidade na escrita: quando em sua velhice tentou aprender – praticando a formação de cartas em sua cama, durante seu tempo livre, em livros e tabletes de cera, ele o fazia sobre seu travesseiro – seu esforço chegou muito tarde e teve pouco sucesso; sua habilidade na leitura também é discutida.

6 - Reformas na Igreja

Carlos Magno expandiu o programa de reforma da Igreja de forma diversa de seu pai Pepino e seu tio Carlomano. O aprofundamento da vida espiritual foi mais tarde visto como central à política pública e governança real. Sua reforma focou no estreitamento da estrutura de poder da Igreja, melhoramento na prática e qualidade moral do clero, na padronização das práticas litúrgicas, melhoramento nos princípios básicos da fé e na erradicação do paganismo. Sua autoridade se estendeu sobre a Igreja e o Estado. Ele podia disciplinar os clérigos, controlar a propriedade eclesiástica e definir a doutrina ortodoxa. A despeito da legislação severa e alteração súbita, ele captara apoio do clero que aprovava deu desejo de aprofundar a piedade e moral de seus súditos.
Em 809-810, Carlos Magno convocou um concílio da Igreja em Aachen que confirmou a crença unânime no oeste, de que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho e sancionou a inclusão, no Credo de Nicene, da frase “e o Filho”, para o que havia buscado a aprovação do Papa Leão III. O Papa, enquanto afirmando a doutrina e aprovando o seu uso no ensino, opos sua inclusão no texto do Credo como adotado no Primeiro Concílio de Constantinopla de 381. Esse falava da processão (na doutrina católica, crença de que o Filho provém do Pai, e de que o Espírito Santo provém de ambos, no mistério da Santíssima Trindade) do Espírito Santo, do Pai, sem adicionar frases tais como “e o Filho” ou “sozinho”. Enfatizando sua oposição, o Papa teve o texto original inscrito em grego e latim em dois pesados brasões dispostos na Basílica de São Pedro.

7 - Reformas na Escrita

Durante o reino de Carlos Magno, a escrita semi-uncial [1] e sua versão cursiva, que tinham dado origem a várias escritas minúsculas continentais, foram combinadas com características da escrita insular em uso em monastérios irlandeses e ingleses. A minúscula carolíngia foi criada parcialmente sob o patrocínio de Carlos Magno. Alcuin, que dirigia a escola palaciana, foi provavelmente sua maior influência.
O caráter revolucionário da reforma carolíngia, contudo, pode ter sido superenfatizado; esforços para coibir a influência merovíngia e germânica, tinham sido tomadas antes de Alcuin chegar a Aachen. A nova minúscula foi disseminada primeiro de Aaachen e mais tarde pelos copistas influentes de Tours, onde Alcuin se aposentou como abade.

8 - Reformas Políticas

Carlos Magno engajou-se em muitas reformas da governança franca, enquanto prosseguia em muitas práticas tradicionais, tais como a divisão do reino entre filhos.
Em 806 Carlos Magno fez o primeiro documento para a tradicional divisão do império à sua morte. Para Carlos, o Jovem, ele designou a Austrasia e Neustria, Saxônia, Burgundy e Turíngia. Para Pepino (Carlomano rebatizado), ele deu a Itália, Bavária e Swabia. Luís recebeu a Aquitaine, Marca Espanhola e a Provence. O título imperial não foi mencionado, o que levou à sugerir que, naquele instante, Carlos Magno viu o título como algo honorário sem grande significado hereditário.
Pepino morreu em 810 e Carlos em 811. Carlos Magno então reconsiderou o assunto e em 813 coroou seu filho mais jovem, Luís, coimperador e correi dos francos, garantindo-lhe a metade do império e o resto quando de sua morte. A única parte do Império que não foi prometida a Luís foi a Itália, que Carlos Magno entregou especificamente a Bernard, filho ilegítimo de Pepino.

IX - LEGADO

Inauguração da estátua de Carlos Magno,
Liège, 26 July 1868
Escrevendo em 840, o neto do Imperador, Nithard, declarou que ao final de sua vida, o grande rei havia “deixado toda a Europa cheia de bondade”. Historiadores modernos deixaram ver o exagero naquela declaração, chamando a atenção para as inadequações do aparato político de Carlos Magno, as limitações de suas forças militares em face das novas ameaças de inimigos marítimos, o fracasso de suas reformas religiosas a afetar a grande massa de cristãos, o tradicionalismo estreito e a tendenciosidade clerical de seu programa cultural e as características opressivas de seus programas econômico e social. Tal atenção crítica do papel de Carlos Magno, contudo, não pode ofuscar o fato de que seu esforço para ajustar as tradicionais ideias francas de liderança e bem público para novas correntes na sociedade fizeram uma diferença crucial na história Europeia. Sua renovação do Império Romano no ocidente forneceu a base ideológica para uma Europa politicamente unificada, uma ideia que tem inspirado os europeus desde sempre – algumas vezes com consequências pouco felizes. Seus feitos como um governante, tanto reais como imaginados, serviram como referência para muitas gerações de governantes europeus que procuravam por orientação na definição e execução de suas funções reais. Suas reformas religiosas solidificaram as estruturas organizacionais e práticas litúrgicas que eventualmente juntaram a maior parte da Europa numa Igreja única. Sua definição do papel da autoridade secular na direção da vida religiosa, deitou as bases para a interação entre a autoridade temporal e a espiritual que representava um papel crucial na modelagem das instituições política e religiosa na posterior história europeia ocidental. Seu renascimento cultural forneceu as ferramentas básicas – escolas, curriculo, livros textos, bibliotecas e técnicas de ensino -sobre as quais as renovações culturais seriam baseadas. O ímpeto que ele deu à relação vassalo-lorde e ao sistema de agricultura conhecido como senhorial (em que os camponeses usam a terra de um lorde em troca de deveres e serviços) representou um papel vital no estabelecimento do sistema senhorial (em que os lordes exerciam poder político e econômico sobre um dado território e sua população); o sistema senhorial, por sua vez, possuía o potencial para impor ordem política e social e estimular o crescimento econômico. Tais realizações certamente justificam os superlativos pelos quais ele era conhecido em seu próprio tempo: Carlos Magno e Pai da Europa!

FIM


[1] Uncial: diz-se de letras ou caracteres romanos de grande dimensão (altura de uma unha) em que foram escritos os textos medievais até o século XI. A escrita semi-uncial é menor que a uncial comum.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

CHARLEMAGNE OU CARLOS MAGNO
(Parte 3 de 4)

VI - CAMPANHAS ORIENTAIS

1 – Guerras contra os Saxões

Carlos Magno esteve envolvido em hostilidades quase constantes por todo o seu reinado, muitas vezes à frente dos seus esquadrões pessoais de elite. Nas guerras contra os saxões, tribo germânica de adoradores pagãos, que duraram trinta anos e dezoito batalhas, ele conquistou a Saxônia (correspondendo, grosseiramente, aos estados da moderna Alemanha da Baixa Saxônia, Westfália, Nordalbingia e Saxônia-Anhalt ocidental, todos no noroeste da Alemanha) dedicando-se à sua conversão ao cristianismo. Os saxões germânicos estavam divididos em quatro grupos, em quatro regiões. Mais próximo da Austrasia ficava a Westfália e mais afastado a Eastphalia. Entre elas estava a Engria e ao norte dessas três, na base da península da Jutland, ficava a Nordalbbingia.
Em sua primeira campanha, em 773, Carlos Magno forçou a submissão dos Engrians, botando abaixo um pilar Irminsul (objeto sagrado em forma de pilar que representava um importante papel no paganismo germânico dos saxões) próximo de Paderborn. A campanha foi abreviada por sua primeira expedição à Itália. Ele retornou em 775, marchando através da Westfália e conquistando o forte saxão em Sigiburg. atravessou então a Engria onde novamente derrotou os saxões. Finalmente, na Eastphalia, ele derrotou uma força saxã, convertendo seu líder Hessi ao cristianismo. Carlos Magno retornou através da Westphalia, deixando acampamentos em Sigiburg e Eresburg, então importantes bastiões saxões. Ele então controlou a Saxônia com exceção da Nordalbingia, mas a resistência saxã não havia terminado.
Após ter subjugado os Dukes de Friuli e Spoleto, Carlos Magno retornou rapidamente à Saxônia em 776, onde a rebelião havia destruído sua fortaleza de Eresburg. Os saxões foram novamente batidos, mas seu líder Widukind fugiu para a Dinamarca, lar de sua esposa. Carlos Magno construiu um novo campo em Karlstadt. Em 777 convocou uma dieta nacional em Paderborn para integrar completamente a Saxônia ao reino Franco. Muitos saxões foram batizados como cristãos.
No verão de 779, ele novamente invadiu a Saxônia, reconquistando Eastphalia, Engria e Westphalia. Em uma dieta próxima de Lippe, ele dividiu o território em distritos missionários que assistiram a vários batizados em missas (780). Ele então retornou à Itália e, pela primeira vez, os saxões não se rebelaram imediatamente, pacificados de 780 a 782. Retornou à Saxônia em 782 instituindo um código de lei e indicando condes saxões e francos. As leis eram draconianas em questões religiosas; por exemplo, a Capitulatio de partibus Saxoniae prescrevia a morte aos pagãos saxões que recusassem sua conversão ao cristianismo, o que renovou os conflitos. Naquele ano, outono, Widukind retornou e conduziu uma nova revolta. Em resposta, em Verden, Baixa Saxônia, Carlos Magno ordenou a execução de 4.500 prisioneiros por decapitação, conhecido como o “Massacre de Verden”. As mortes dispararam três anos de renovadas guerras sangrentas. Durante esta guerra, os Frisians Orientais entre os Lauwers e os Weser se uniram aos saxões em revolta e foram finalmente subjugados. A guerra terminou com Widukind aceitando o batismo. Os Frisians posteriormente pediram que missionários fossem enviados a eles e um bispo de sua própria nação, Ludger, foi enviado. Carlos Magno também proclamou um código de leis, o Lex Frisonum, o que fizera para muitos povos súditos.
Depois disso, os saxões mantiveram uma paz por sete anos, mas em 792 a Westphalia novamente se rebelou. Os Eastphalians e Nordalbingians se juntaram a eles em 793, mas a insurreição foi impopular e encerrada em 794. Uma rebelião Engrian se seguiu em 796, mas a presença de Carlos Magno, saxões e eslavos cristãos rapidamente os destruiu. A última insurreição ocorrida em 804, mais de 30 anos após a primeira campanha contra eles, também falhou.
A guerra que havia durado tantos anos afinal terminou pelo aceite dos termos do Rei: renúncia aos seus costumes religiosos nacionais e adoração de demônios, aceitação dos sacramentos da fé e religião cristã e a união com os francos para formar um só povo.

2 – Submissão da Bavária

Por 774, Carlos Magno invadira o Reino da Lombardia [1] e mais tarde anexou os territórios da Lombardia assumindo a sua coroa e colocando os Estados Papais sob a proteção franca. O Ducado de Spoleto ao sul de Roma foi adquirido em 774, enquanto nas partes centro oeste da Europa, o Ducado da Bavária foi absorvido e a política bávara de estabelecer fronteiras tributárias entre os servos eslavos e thecos prosseguiu. O poder remanescente contra os francos no leste eram os avaros. Contudo, Carlos Magno adquiriu outras áreas eslavas, incluindo a Boêmia, Moravia, Áustria e Croácia.
Em 789 Carlos Magno voltou-se contra a Bavária, queixando-se que Tassilo III, Duque da Bavária não era um governante adequado por ter quebrado seu juramento. As acusações eram exageradas, mas Tassilo foi deposto de qualquer maneira e colocado no monastério de Jumièges. Em 794 Tassilo foi obrigado a renunciar a qualquer intenção sobre a Bavária, para si e toda sua família (os Agilolfings), no sínodo de Frankfurt, quando formalmente entregou ao rei todos os direitos que possuíra. A Bavária foi subdividida em condados Francos, à semelhança da Saxônia.

3 – Campanhas Contra os Ávaros

Em 788, os Ávaros (Avares ou Abares), um grupo nômade asiático que se havia estabelecido no que hoje é a Hungria, sucessores do Hunos, invadiram Friuli (região ao nordeste da Itália) e Bavária. Ocupado com outras questões, Carlos Magno marchou, em 790, seguindo o rio Danúbio e devastou o território ávaro de Györ (hoje a mais importante cidade do noroeste da Hungria). Um exército lombardo sob Pippin então marchou para o vale do rio Drava e devastou a Pannonia [2]. As campanhas terminaram quando os saxões novamente se revoltaram em 792.
Pelos dois anos seguintes, Carlos Magno esteve ocupado, além dos eslavos, com os saxões. Pippin e o Duque de Friuli continuaram, contudo, contra os baluartes dos ávaros. Sua fortaleza mais importante foi tomada duas vezes e logo os governantes ávaros perderam a vontade de lutar, viajando a Aachen, capital de Carlos Magno para se tornarem seus vassalos e cristãos. Carlos Magno aceitou sua rendição e enviou um chefe nativo de volta à Bavária, que conseguiu manter seu povo em linha; entretanto, em 800, os búlgaros sob Khan Krum atacaram o que sobrara do estado ávaro. Em 803, Carlos Magno enviou um exército bávaro à Pannonia, derrotando e trazendo um fim à confederação ávara. Em novembro do mesmo ano, Carlos Magno foi para Regensburg onde os líderes ávaros o reconheceram como governante. Em 805, o khagan [3] ávaro, que já fora batizado, foi a Aachen pedir permissão para assentar seu povo a sudeste de Viena. Os territórios Transdanubianos tornaram-se parte integral do reino Franco que foi abolido pelos magiares em 899-900.

4 – Expedições aos eslavos do nordeste

Em 789, em reconhecimento aos seus novos vizinhos pagãos, os eslavos, Carlos Magno conduziu um exército austrasio-saxão além do rio Elba, em território dos Obotritas [4]. Os eslavos finalmente se submeteram conduzidos por seu líder Witzin. Carlos Magno então aceitou a rendição dos Veleti [5] sob Dragovit exigindo muitos reféns. Também exigiu permissão para enviar missionários a essa região pagã. O exército marchou para o Báltico antes de retornar e marchar para o Reno, fazendo muita pilhagem sem ameaças. Os eslavos que pagavam tributo se tornaram leais aliados. Em 795, quando os saxões quebraram a paz, os Obotritas e Veleti se revoltaram com seu novo mandante contra os saxões. Witzin morreu em batalha e Carlos Magno vingou-o destruindo os habitantes da Eastphalia no Elba. Thrasuco, seu sucessor, conduziu seus homens à conquista dos Nordalbingianos, entregando seus líderes a Carlos Magno. Os Obotritas permaneceram leais até a morte de Carlos Magno.

5 – Expedições aos eslavos do sudeste

Após incorporar grande parte da Europa Central, Carlos Magno trouxe o Estado Franco face a face com os ávaros e eslavos do Sudeste. Os vizinhos mais a sudeste dos Francos eram os Croatas, que se estabeleceram na Croácia Pannoniana e Croácia Dálmata. Em 796, Carlos Magno obteve uma importante vitória sobre eles. O Duque Voinomir, da Croácia Pannoniana ajudou Carlos Magno e os francos se fizeram Lordes dos Croatas do norte da Dalmácia, Eslavônia e Pannonia.
O comandante franco Eric de Friuli pretendeu estender seu domínio conquistando o Ducado do Litoral Croata. Àquela época, a Croácia Dálmata era governada pelo Duque Viseslav da Croácia. Na Batalha de Trsat as forças de Eric abandonaram suas posições e foram perseguidas pelas forças de Viseslav quando, entre outros Eric foi morto, causando grande impacto no Império Carolíngio.
Carlos Magno também dirigiu sua atenção aos eslavos a oeste do Kaganato Ávaro: os Carantanianos e os Carniolanos. Esses povos foram subjugados pelos lombardos e os bávaros, passando a pagar tributos, mas nunca foram totalmente incorporados ao Estado Franco.

VII - IMPÉRIO

1 - Coroação

Em 799, o Papa Leão III havia sido assaltado por romanos que tentaram arrancar seus olhos e língua. Conseguindo escapar, fugiu para Carlos Magno em Paderbom, Aconselhado pelo sábio Alcuin, Carlos Magno viajou para Roma em novembro de 800 e reuniu um sínodo. Em 23 de dezembro, Leão III fez um juramento a Carlos Magno e dois dias após, durante a missa do Natal (25 de dezembro), quando Carlos Magno ajoelhou-se no altar para rezar, o Papa coroou-o “Imperador dos Romanos” na Basílica de São Pedro. Com isso o Papa rejeitava a legitimidade de Imperador de Irene de Constantinopla.

A Coroação Imperial de Carlos Magno no ano 800
Quando Odoacro forçou a abdicação de Romulus Augustus (em 476 DC), ele não aboliu o Império Ocidental como um poder separado, mas causou a sua reunião com o Império Oriental, de modo que, dali para a frente, houvesse um único Império Romano. O Papa Leão III e Carlos Magno, como os imperadores predecessores, também queriam um Império Romano uno e indivisível e propuseram a coroação de Carlos Magno, não para proclamar a divisão do Ocidente e do Oriente, mas legitimamente preenchendo o lugar do deposto Constantino VI (deposto, cego e aprisionado por sua mãe, Irene, em 797 DC). Entretanto, sua coroação teve o efeito de estabelecer dois Impérios separados (e muitas vezes opostos) e duas demandas pela autoridade imperial, conduzindo à guerra em 802 e por muitos séculos futuros, com os imperadores do Ocidente e Oriente buscando a soberania do todo.
Historicamente, não há um consenso sobre o que realmente significou a coroação de Carlos Magno. Muitos historiadores dizem que ele sabia o que aconteceria e desejava a coroação; outros tantos afirmam que ele não desejava a coroação justamente para evitar a polêmica futura e que, ao chegar a Catedral, nem mesmo sabia que tal ato ocorreria.
Para o Papa e Carlos Magno, o Império Romano permanecia uma potência significativa na política europeia daquele tempo. O Império Bizantino, baseado em Constantinopla, continuava a manter uma parte substancial da Itália, com fronteiras não muito longe de Roma. O assento de Carlos Magno, no julgamento do Papa, poderia ser visto como usurpação das prerrogativas do Imperador em Constantinopla.
Por quem, contudo, poderia o Papa ser julgado? Quem, em outras palavras estava qualificado a proferir julgamento sobre o “Vigário de Cristo”? Em circunstâncias normais, a única resposta concebível à questão, teria sido o Imperador em Constantinopla; mas o trono imperial, no momento, era ocupado por Irene, consorte do imperador Leão IV de 775 a 780, regente durante a infância de seu filho Constantino VI de 780 a 790, comandatária de 792 até 797 e finalmente Imperatriz do Império Romano do Oriente de 797 a 802. A Imperatriz era notória por ter cegado e assassinado seu próprio filho, mas nas mentes do Papa e de Carlos Magno isso era quase imaterial, bastando que ela fosse mulher. O sexo feminino era conhecido por ser incapaz de governar e pela velha tradição sálica (a Lei Sálica, que excluía as mulheres da sucessão), excluída de tal possibilidade. No que concerne à Europa Ocidental, o trono dos Imperadores estava vago: a reivindicação de Irene a ele era apenas uma prova adicional, se alguma fosse necessária, da degradação em que havia caído o chamado Império Romano.
Se não havia um Imperador vivo ao tempo, o Papa deu o extraordinário passo para criar um. Desde 727 o papado havia estado em conflito com os predecessores de Irene em Constantinopla por uma série de questões, principalmente a permanente aderência à doutrina do iconoclasta, a destruição de imagens ou monumentos cristãos e com isso o Império Bizantino na Itália Central, a partir de 750 havia sido anulado.
Conferindo a coroa imperial a Carlos Magno, o Papa trouxe a si próprio o direito de indicar o Imperador dos Romanos, estabelecendo a coroa imperial como seu presente pessoal, mas simultaneamente garantindo a si próprio uma implícita superioridade ao Imperador que ele havia criado. E porque os bizantinos se haviam demonstrado tão insatisfatórios de todos os pontos de vista – político, militar e doutrinário – ele selecionaria um ocidental: aquele que, por sua sabedoria, política e vastidão de seus domínios se apresentasse acima de seus contemporâneos.
Portanto, com a coroação de Carlos Magno, o Império Romano permaneceu, no que concerne a Carlos Magno e ao Papa Leão, uno e indivisível, com Carlos como seu imperador, embora a coroação tenha sido furiosamente contestada em Constantinopla.
Segundo o cronista Theophanes, membro da aristocracia bizantina e depois monge, a reação de Carlos Magno, à sua coroação, foi tomar os primeiros passos para assegurar o trono de Constantinopla, através do envio de ofertas a Irene, às quais ela teria reagido favoravelmente.
É importante distinguir entre os conceitos universal e local do Império, ainda controvertido entre historiadores. De acordo com o primeiro, o Império era uma monarquia universal, uma espécie de confederação mundial, cuja unidade transcendia qualquer distinção menor; e o Imperador, merecedor da obediência da Cristandade. De acordo com o segundo, o Imperador não tinha ambição de domínio universal; seu reino era limitado como o de qualquer outro governante e quando apresentou queixas mais amplas, tinha como objetivo se preservar dos ataques do Papa ou do imperador bizantino. De acordo com essa visão, a origem do Império deve ser explicada por circunstâncias locais específicas ao invés de teorias mais abrangentes. Entretanto, na primavera de 813, em Aachen, Carlos Magno indicou seu único filho vivo, Luís, como imperador, sem recorrer a Roma, mas apenas pela aclamação de seus francos, ou seja, uma aclamação cristã franca e não romana, significando a independência de Roma e a explicitação de um Império Franco.

2 - Título Imperial

Carlos Magno usou tais circunstâncias para reivindicar seu título de “Renovador do Império Romano”, que havia declinado sob os bizantinos.
O título de Imperador permaneceu na família Carolíngia por muitos anos, mas divisões de território e a luta pela supremacia do Estado Franco, enfraqueceram o seu significado. O próprio Papado nunca esqueceu o título nem abandonou o seu direito de concedê-lo. Quando a família de Carlos Magno deixou de produzir herdeiros de valor, o Papa, com muita satisfação, coroou qualquer magnata italiano que melhor o protegesse de seus inimigos locais. O Império permaneceria em existência contínua por mais de um milênio, como o “Sacro Império Romano”, um verdadeiro sucessor imperial de Carlos Magno.

3 - Diplomacia Imperial

A iconoclastia (destruição deliberada dos ícones ou imagens religiosas) da dinastia Isáurica bizantina (também chamada de dinastia Síria, que governou o império Bizantino entre 717 e 802) foi endossada pelos francos. O Segundo Concílio de Niceia reintroduziu a veneração de ícones, sob a Imperatriz Irene, em 787. O Concílio não foi reconhecido por Carlos Magno, já que emissários francos não haviam sido convidados, embora governasse mais de três províncias do império clássico romano e fosse considerado com a mesma dignidade do imperador bizantino. O Papa apoiava a reintrodução da veneração icônica, mas politicamente divergia do Bizâncio; certamente, ele desejava aumentar a influência do papado, para honrar seu salvador Carlos Magno e para resolver questões constitucionais que então criavam problemas a juristas europeus, em uma era em que Roma não se encontrava nas mãos de um imperador. Assim, a aceitação do título imperial não foi uma usurpação aos olhos dos francos ou italianos; mas foi assim visto no Bizâncio, onde foi protestado por Irene e seu sucessor Nikephoros I, nenhum dos quais tinha grande efeito ao manifestar seus protestos.
Os romanos orientais, contudo, ainda mantinham vários territórios na Itália: Veneza, Reggio (na Calábria), Otranto (em Apulia) e Nápoles. Tais regiões permaneceram fora das mãos francas até 804, quando os venezianos, separados por lutas internas, transferiram sua submissão à Coroa de Ferro de Pepino, filho de Carlos Magno, com isso encerrando a Paz de Nikephoros (paz entre os impérios Franco e Bizantino). Nikephoros devastou as costas com suas frotas, iniciando o único real exemplo de guerra entre bizantinos e francos. O conflito durou até 810, quando o partido pro Bizâncio de Veneza entregou esta cidade de volta ao governador bizantino e os dois imperadores da Europa fizeram paz. Em 812, o imperador bizantino Michael I Rangabe reconheceu seu status de imperador, não necessariamente “Imperador dos Romanos”.

4 - Ataques Dinamarqueses

Após a conquista da Nordalbíngia [6], a fronteira franca foi posta em contato com a Escandinávia. Os pagãos dinamarqueses, habitando a Península da Jutelândia, tinham ouvido muitas histórias sobre as ameaças dos francos e da fúria que seu rei Cristão dirigia aos seus vizinhos pagãos. Em 808 o rei dos dinamarqueses, Godfred, expandiu o vasto Danevirke, um sistema defensivo de fortificação de terra, através do istmo de Schleswig. Tal sistema protegia a terra dinamarquesa e dava a Godfred a oportunidade de ameaçar a Frisia e Flanders com ataques piratas, subjugando aliados dos francos. Assassinado por um franco ou um de seus próprios homens, Godfred foi sucedido por seu sobrinho Hemming, que concluiu, com Carlos Magno, o Tratado de Heiligen, em 811.

5 - Morte

De acordo com Einhard, Carlos Magno esteve com boa saúde até os quatro últimos anos de sua vida, quando passou a sofrer de febres e sem energia. Contudo, mesmo naqueles tempos ele seguia mais os seus próprios conselhos do que os conselhos dos médicos.
Em 813, Carlos Magno chamou à sua corte, Luís, o Pio, rei da Aquitânia, seu único filho legítimo sobrevivente, lá coroando-o como seu co-imperador e enviando-o de volta à Aquitânia. Ele então passou o outono caçando antes de retornar a Aachen, em primeiro de novembro. Em janeiro foi acometido de pleurisia, caindo em profunda depressão – principalmente porque muitos de seus planos não foram realizados – que o levou à cama em 21 de janeiro e o matou em 28 do mesmo mês, às nove horas, após tomar a comunhão, aos setenta e dois anos de idade e após 47 anos de reinado. Foi enterrado no mesmo dia, na Catedral de Aachen. 

Mapa da Europa cerca do ano 814
Luís sucedeu-o como Carlos havia pretendido. Deixou um testamento alocando seus bens em 811 que não foi atualizado antes de sua morte. Deixou a maior parte de seus bens à Igreja para serem usados como caridade. Seu Império, na totalidade, durou somente uma outra geração; sua divisão, de acordo com o costume, entre os filhos de Luís, após a sua morte, conduziu à fundação dos modernos Estados da Alemanha e da França.
Nas décadas seguintes seu império foi dividido entre seus herdeiros e ao final dos anos 800 havia sido dissolvido. Contudo, Carlos Magno tornou-se uma figura lendária de qualidades míticas.

Uma história posterior, contada por Otho de Lomello, Conde do Palácio de Aachen ao tempo do Imperador Otto III (cerca do ano 1000), atestaria que ele e Otto haviam descoberto a tumba de Carlos Magno que, segundo eles, estaria sentado em um trono, usando uma coroa e segurando um cetro, com sua carne praticamente perfeita.
Em 1165, sob o Imperador Frederick Barbarossa (1122-1190), Carlos Magno foi canonizado por razões políticas, fato não reconhecido pela Igreja. Sua tumba foi reaberta e o Imperador colocado num esquife feito de ouro e prata, conhecido como Karlsschrein.


Segue na próxima postagem com a Parte 4 de 4


[1] Povo de origem germânica que ocupou a Península Itálica na última parte do século VI, com seu reino subdividido num número variável de ducados governados por duques autônomos, ainda subdivididos a nível municipal. A capital do reino era Pavia, situada na região da Lombardia, ao norte da Itália.
[2] A Pannonia estava localizada no território atual do oeste da Hungria, leste da Áustria, norte da Croácia, Eslovênia, Bósnia e Herzegovina e noroeste da Sérvia. Durante o Período das Migrações no século V, algumas partes da Pannonia foram cedidas aos Hunos pelos romanos. Após o colapso do Império Huno em 454, muito ostrogodos foram estabelecidos na área como federados aos romanos. O Império Romano do Oriente controlou partes do sul da Pannonia no século VI. Posteriormente, ela foi novamente invadida pelos ávaros e os eslavos, mas tornou-se independente apenas a partir do século VII. Em 790 foi então invadida pelos Francos.
[3] Khagan é um título de graduação imperial nas línguas turca, mongol e outras, equivalente ao status de imperador e alguém que governa um khaganato (império).
[4] Os Obotritas foram uma confederação de tribos do oeste eslavo medieval, ao norte da Alemanha. Por décadas eles foram aliados de Carlos Magno em suas guerras contra os saxões germânicos e os Veleti eslavos. Sob o comando do príncipe Thrasco, os obotritas derrotaram os saxões na batalha de Bornhöved (798). Os saxões ainda pagãos foram dispersados pelo imperador e parte de sua terra original, ao norte do Elba, foi entregue aos obotritas em 804 como recompensa por sua vitória.
[5] Os Veleti eram um grupo de tribos medievais dentro do território do que hoje é o nordeste da Alemanha, aparentado com os eslavos polabianos (poloneses). Junto com outros grupos eslavos entre os rios Elba e Oder, eles eram frequentemente descritos por fontes germânicas como Wends.
[6] Também conhecida como Albíngia do Norte, foi uma das quatro regiões administrativas do Ducado da Saxônia medieval, junto com Angria, Eastphalia e Westphalia. O nome da região é baseado no nome latino Alba, do rio Elba, e se refere à área predominantemente localizada ao norte do Baixo Elba, grosseiramente correspondendo à atual região do Holstein, norte da Alemanha, o mais antigo domínio conhecido dos saxões.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

CHARLEMAGNE OU CARLOS MAGNO
(Parte 2 de 4)

III - ESPOSAS, CONCUBINAS E FILHOS

Carlos Magno teve 18 filhos com oito de suas dez esposas ou concubinas conhecidas. Entretanto, teve apenas quatro netos legítimos, os quatro filhos de seu quarto filho Luís. Além disso, ele teve um neto, Bernardo da Itália (o único filho de seu terceiro filho Carlomano, rebatizado Pepino da Itália), ilegítimo, mas incluído na linha de hereditariedade. Entre seus descendentes estão várias dinastias reais que incluem os Habsburgs, Capetas e Plantagenetas. Em consequência, a maioria, senão todas as famílias nobres europeias estabelecidas desde então podem, genealogicamente, ligar algo do seu passado a Carlos Magno.
Durante a primeira paz de alguma duração substancial em seu reino (780-782), Charles começou a colocar seus filhos em posições de autoridade. Em 781, durante visita a Roma, ele fez seus dois filhos mais novos reis, coroados pelo Papa. O mais velho dos dois, Carlomano, foi feito rei da Itália, tomando a Coroa de Ferro que seu pai havia usado pela primeira vez em 774, sendo na mesma cerimônia rebatizado como Pepino (não confundir com o mais velho e possivelmente ilegítimo filho de Carlos Magno, Pepino, o Corcunda). O mais jovem dos dois, Luís, tornou-se rei da Aquitaine. Carlos Magno ordenou que esses seus dois filhos fossem criados nos costumes de seus reinos, dando a seus regentes algum controle sobre seus sub-reinos mantendo o poder real, embora pretendendo que seus filhos herdassem seus reinos. Nunca tolerou insubordinação de seus filhos: em 792 ele baniu Pepino, o Corcunda, para a Abadia de Prüm porque o jovem uniu-se a uma rebelião contra ele.
Carlos Magno determinou-se a bem educar suas crianças, incluindo suas filhas, da mesma forma que seus pais haviam insuflado a importância de aprender com ele em tenra idade. Seus filhos também aprenderam habilidades de acordo com seus status aristocráticos, que incluíam treinamento em equitação para os homens e bordado, fiação e tecelagem para as mulheres.
Os filhos lutaram muitas guerras para seu pai. Carlos era particularmente preocupado com os bretões, cujas fronteiras ele repartia e que se insurgiram em, pelo menos, em duas ocasiões. Ele também lutou contra os saxões em múltiplas ocasiões. Em 805 e 806 ele foi enviado à Böhmerwald (moderna Bohemia) para se ocupar dos eslavos que lá residiam (tribos bohemias, ancestrais dos modernos tchecos). Sujeitou-os à autoridade franca e devastou o vale do Elba, forçando-os a pagar tributos. Pepino teve que manter as fronteiras Ávara e Beneventana e lutou contra os Eslavos ao norte. Ele foi singularmente motivado a combater o Império Bizantino, quando o conflito surgiu após a coroação imperial de Carlos Magno, e uma rebelião Veneziana. Luís, finalmente, foi o encarregado da Marca Espanhola [1] e lutou contra o Duque de Benevento no sul da Itália, pelo menos em uma ocasião. Tomou Barcelona num grande sítio, em 797.
Carlos Magno manteve suas filhas com ele, em casa, recusando-lhes casamento (embora tenha anteriormente permitido o casamento de sua filha mais velha Rotrude com Constantino VI do Bizâncio, este enlace foi anulado quando Rotrude tinha 11 anos de idade). A oposição de Carlos Magno ao casamento de suas filhas pode, possivelmente, ter pretendido evitar a criação de ramos secundários da família que pudessem desafiar a linha principal. Contudo, ele tolerou suas relações extramaritais, mesmo recompensando seus “maridos habituais” e enriquecendo os netos ilegítimos por eles produzidos. Aparentemente, ele também recusava crer nas histórias de seus comportamentos selvagens. Após sua morte, as filhas sobreviventes foram banidas da corte por seu irmão, o pio Luís, para residirem em conventos que elas tinham recebido por herança de seu pai. Pelo menos uma delas, Bertha, teve uma relação reconhecida, se não casamento, com Angilbert, um membro da corte de Carlos Magno.

IV - CAMPANHAS ITALIANAS

1 – Conquista do Reino Lombardo

Com sua ascensão em 772, o Papa Adriano I exigiu o retorno de certas cidades do antigo Exarcado de Ravena [2], de acordo com a promessa de Desiderius (último governante lombardo a exercer um reinado regional). Ao invés disso, Desiderius invadiu a Pentápolis (grupo de cinco cidades às margens do Adriático: Rimini, Pesaro, Fano, Sinigaglia e Ancona), dirigindo-se para Roma. Adriano enviou embaixadores a Carlos Magno, solicitando que ele cumprisse as promessas de seu pai Pepino. Desiderius enviou seus próprios embaixadores negando as solicitações do Papa. Os embaixadores se encontraram em Thionville e Carlos Magno tomou o partido do Papa, exigindo o cumprimento das suas solicitações, com o que jurou Desiderius nunca concordar. Carlos Magno e seu tio Bernardo atravessaram os Alpes em 773 e o perseguiram até Pavia (Próximo de Milão) que passaram a sitiar. Carlos Magno abandonou temporariamente o cerco para negociar com Adelchis, filho de Desiderius, que levantava um exército em Verona. O jovem príncipe foi perseguido até o litoral do Adriático e fugiu para Constantinopla em busca de assistência de Constantino V, que fazia guerra contra a Bulgária.
O cerco durou até 774, quando Carlos Magno visitou o Papa em Roma, onde confirmou as promessas de terras de seu pai, recebendo do Papa o título de patrício. Retornou então a Pavia, onde os lombardos iniciavam sua rendição. Em troca de suas vidas os lombardos renderam-se, abrindo seus portões no início do verão. Desiderius foi enviado para a Abadia de Corbie e seu filho Adelchis morreu em Constantinopla. Carlos Magno corou-se com a Coroa de Ferro fazendo com que os magnatas da Lombardia lhe pagassem homenagem em Pavia. Somente o Duque Arechis não se submeteu e proclamou sua independência. Com isso Carlos Magno tornou-se senhor da Itália como rei dos lombardos, deixando a Itália com uma guarnição em Pavia e alguns condes francos em posição no mesmo ano.
A instabilidade prosseguiu na Itália e em 776 os Duques Hrodgaud de Friuli e Hildebrand de Spoleto se rebelaram. Carlos Magno retornou rapidamente da Saxônia, derrotando o Duque de Friuli (assassinado em seguida) em batalha. O Duque de Spoleto assinou um tratado, mas seu vizinho conspirador, Arechis, não foi subjugado. Com isso o norte da Itália era fiel a Carlos Magno.

2 – Sul da Itália

Em 787, Carlos Magno dirigiu sua atenção para o Ducado de Benevento, onde Arechis II reinava independentemente com o autoconcedido título de Príncipe. O sítio de Salerno, por Carlos Magno, forçou Arechis II a submeter-se, mas após sua morte, em 787, seu filho Grimoald III proclamou o Ducado de Benevento novamente independente. Grimoald foi atacado várias vezes pelos exércitos de Carlos Magno ou de seus filhos sem que alcançassem vitória definitiva. Carlos Magno perdeu interesse na região e nunca mais retornou ao sul da Itália onde Grimoald manteve seu ducado livre da suserania franca.

V - EXPANSÃO CAROLÍNGIA PARA O SUL

1 – Vasconia (ou Gasconha) e os Pirineus

A guerra conduzida por Pepino, na Aquitânia, embora com um final satisfatório aos francos, provou que a estrutura de poder ao sul do Loire era fraca e não confiável. Após a derrota e morte de Waiofar (último duque independente da Aquitânia), em 768, quando a Aquitânia novamente se submetia à dinastia Carolíngia, uma nova rebelião eclodiu em 769, liderada por Hunald II, um possível filho de Waifer. Ele refugiou-se com o aliado Duque Lupus II da Gasconha o qual, por medo de uma reprise de Carlos Magno, entregou-o ao novo Rei dos Francos a quem hipotecou lealdade, o que parecia confirmar a paz na área Basca ao sul do Garone.
Cauteloso sobre novos levantes bascos, Carlos Magno parece ter tentado conter o poder do Duque Lupus fazendo Seguin o Conde de Bordeaux (778) bem como outros condes de antecedentes francos nas áreas fronteiriças (Toulouse, Condado de Fézensac). O Duque basco, por seu lado, parece ter contribuído decisivamente ou maquinado a Batalha do Passo de Roncevaux (“traição basca”). A derrota do exército de Carlos Magno em Roncevaux (778) confirmou sua determinação de governar diretamente pelo estabelecimento do Reino da Aquitaine (dirigido por Luís, o Piedoso) apoiado numa força base de oficiais francos, distribuindo terras entre colonizadores e alocando terras à Igreja, que tomara como aliada. Um programa de cristianização foi posto em prática através dos Altos Pirineus (778).
O novo arranjo político para a Vasconia não assentou bem aos lordes locais. Em 788 Adalric lutava e capturava Chorson, o conde carolíngio de Toulouse. Este foi, ao final, libertado, mas Carlos Magno, encolerizado com isso, decidiu depô-lo, colocando em seu lugar seu curador William de Gellone. Este lutou contra os bascos e derrotou-os após banir Adalric.
De 781 (Pallars, Ribagorça) a 806 (Pamplona sob influência franca, usando o ducado de Toulouse como base), Carlos Magno firmou autoridade franca sobre os Pirineus, subjugando as fronteiras sudoeste de Toulouse (790) e estabelecendo condados vassalos ao sul dos Pirineus para constituir a Marca Espanhola. Em 794, um vassalo franco, o lorde basco Belasko governou Álava, mas Pamplona permaneceu sob Cardovan e controle local até 806. Belasko e os condados da Marca Espanhola proveram a base necessária para atacar os Andaluzes (uma expedição conduzida por William Conde de Toulouse e Luís o Piedoso para capturar Barcelona em 801). Eventos no ducado de Vasconia (rebelião em Pamplona, deposição do conde em Aragon, deposição do Duque Seguin de Bordeaux, levante dos lordes bascos etc...), provaram sua efemeridade após a morte de Carlos Magno.

2 – Campanha de Roncesvalles

De acordo com o historiador muçulmano Ibn al-Athir, a Dieta (Corpo Deliberativo do Sacro Império Romano) de Paderborn havia recebido os representantes muçulmanos de Zaragoza, Girona, Barcelona e Huesca. Seus líderes haviam sido entocados na Península Ibérica por Abd ar-Rahman I, o Emir Omíada de Córdova. Esses mandatários “sarracenos” (mouros e muladis) ofereceram reverência ao rei dos Francos em troca de apoio militar. Enxergando uma oportunidade de estender a Cristandade e seu próprio poder e acreditando que os saxões eram uma nação totalmente conquistada, Carlos Magno concordou em ir à Espanha.
Em 778 ele conduziu o exército neustriano (da Nêustria, região oeste do reino dos francos) através dos Pirineus Ocidentais, enquanto os austrasianos (ducado da Austrásia), lombardos e burgundianos (de Burgundy) atravessaram pelos Pirineus Orientais. Os exércitos se encontraram em Zaragoza e Carlos Magno recebeu as reverências dos mandatários muçulmanos Sulayman al-Arabi e Kasmin ibn Yusuf, mas a cidade não caiu. De fato, Carlos Magno enfrentou a mais árdua batalha de sua carreira. Os muçulmanos o forçaram a retirar-se e ele decidiu-se a voltar para casa pois não podia confiar nos Bascos, a quem ele havia subjugado na conquista de Pamplona. Iniciou sua retirada da Iberia mas ao passar pelo Passo de Roncevaux ocorreu um dos mais famosos eventos do seu reinado. Os Bascos atacaram e destruíram sua retaguarda e carros de carga. A Batalha do Passo de Roncevaux, menos uma batalha do que uma escaramuça, deixou muitos mortos famosos, incluindo o mordomo Eggihard, o conde do palácio Anselmo e o guardião das fronteiras com a Bretanha (Breton March), Rolando, que inspirou a subsequente criação da “Canção de Rolando”.

3 – Contato com os Sarracenos [3]

A conquista da Itália colocou Carlos Magno em contato com os Sarracenos que, à época, controlavam o Mediterrâneo. Seu filho mais velho, Pepino, o Corcunda, esteve muito ocupado com os sarracenos na Itália. Carlos Magno conquistou a Córsega, Sardenha e as Ilhas Baleares. As ilhas foram frequentemente atacadas por piratas sarracenos, mas os condes de Gênova e da Toscana controlaram esses ataques com grandes frotas até o final do reinado de Carlos Magno. Ele teve também contato com a corte do califado em Bagdá e em 797 (ou possivelmente 801) o califa Harun al-Rashid o presenteou com um elefante asiático (Abul-Abas) e um relógio.

4 – Guerras com os Mouros [4]

Na Espanha, os conflitos com os mouros continuaram, sem atenuação, por toda a última metade de seu reinado, com Luís encarregado da fronteira espanhola. Em 785 seus homens capturaram Girona permanentemente e estenderam o controle franco no litoral catalão até o final do reinado de Carlos Magno (a área permaneceu nominalmente franca até o Tratado de Corbeil, em 1258). Os chefes muçulmanos no nordeste da Espanha Islâmica estavam em permanente rebelião contra a autoridade de Córdova e frequentemente recorriam à ajuda dos francos. A fronteira franca foi lentamente se estendendo até 795, quando Girona, Cardona, Ausona e Urgell foram unidas à nova fronteira Espanhola, dentro do velho ducado da Septimania.
Em 797, Barcelona, a maior cidade da região caiu aos francos, quando Zeid, seu governador, rebelou-se contra Córdova e, falhando, entregou-a a eles. A autoridade Omíada recapturou-a em 799. Entretanto, Luís da Aquitânia marchou com todo o exército de seu reino, pelos Pirineus, e sitiou Córdova por dois anos, quando ela capitulou. Os francos continuaram a pressionar contra o Emir, tomando Tarragona e Tortosa em 811. A última conquista os levou à foz do Ebro, dando-lhes acesso a Valência e forçando o Emir Al-Hakam a reconhecer suas conquistas em 813.

Segue na próxima postagem, com a Parte 3 de 4.


[1] Área militar neutra além da original província da Septimania, estabelecida por Carlos Magno em 795, como barreira defensiva entre os mouros omíadas de Al-Andalus e o Império Carolíngio Franco.
[2] O Exarcado de Ravena, ou da Itália, foi um território do Império Romano do Oriente (Império Bizantino), na Itália, que sobreviveu de 584 a 751, quando o último exarca (mantenedor de qualquer dos vários escritórios históricos, alguns deles políticos ou militares e outros eclesiásticos) foi condenado à morte pelos Lombardos (povo germânico que governou a maior parte da Península Itálica, de 568 a 774, com origens próximas do Elba, ao norte da Alemanha e sul da Suécia, antes do Período da Migração). Foi um dos dois exarcados estabelecidos pelo Imperador Justiniano em sua Reconquista do ocidente, para mais efetivamente poder administrar os territórios, junto com o Exarcado da África (Cartago).
[3] Sarraceno foi um termo usado por escritores cristãos, durante a Idade Média, para se referir a muçulmanos, principalmente de origem árabe, mas também de origem turca ou persa. O significado do termo evoluiu com o uso na história; nos primeiros séculos da era cristã, escritos gregos e latinos usaram o termo para se referir às pessoas que habitavam as áreas desérticas da província romana de Arabia Petrae ou próximas dela, bem como da Arábia Deserta. Durante os primórdios da Idade Média na Europa, o termo veio a ser associado com as tribos da Arábia. A mais antiga fonte que menciona “sarracenos” relacionados ao Islã, data do século VII e foi encontrada num comentário cristão, em grego, que discutia, entre outras coisas, a conquista do Levante pelos muçulmanos, ocorrida após o estabelecimento do Califado Rashidun, após a morte de Maomé. Pelo século XII, “sarraceno” se tornara sinônimo de “muçulmano”.
[4] O termo “Mouro” é uma palavra estrangeira primeiramente usada por cristãos europeus para designar os habitantes muçulmanos do Maghreb (região oeste do norte da África), Península Ibérica, Sicília e Malta durante a Idade Média. Os mouros eram, inicialmente, os indígenas Bérberes do Maghreb. O termo foi, posteriormente, aplicado a árabes e habitantes da Península Ibérica arabizados.