Homenagem ao lendário herói ancestral dos ingleses que deu título a um dos considerados "Cem Maiores Livros do Mundo" e tido como o mais antigo escrito em "Old English".

sábado, 4 de março de 2017

A REFORMA E OS REFORMADORES - PARTE 7 (Última)

VIII - RESULTADOS E CONSEQUÊNCIAS DA REFORMA

No que se refere à Igreja Católica Apostólica Romana, não há dúvida de que a Reforma destruiu a unidade de fé e organização eclesiástica dos povos cristãos da Europa, removeu muitos milhões do que considerava, até então, a verdadeira Igreja Católica e despojou-os da maior parte dos meios saudáveis de cultivo e manutenção da vida sobrenatural. Um incalculável dano resultou do ponto de vista religioso. A falsa doutrina fundamental de justificação apenas pela fé, ensinada pelos reformadores, produziu uma lamentável superficialidade na vida religiosa. O zelo pelas boas obras desapareceu, o ascetismo que a Igreja havia praticado desde sua fundação foi desprezado, objetos de caridade e eclesiásticos não foram mais cultivados adequadamente, os interesses sobrenaturais foram ao solo e as aspirações naturalistas visando o puramente mundano se espalharam. A negação da autoridade divinamente instituída da Igreja no que concerne à doutrina e ao governo eclesiástico, abriu as portas às excentricidades, dando origem à divisão sem fim de seitas e às disputas sem fim características do Protestantismo, conduzindo apenas à completa descrença que necessariamente surgiu dos princípios protestantes. Da real liberdade de crença entre os reformadores do século XVI, não restou um só traço; ao contrário, a maior tirania em questões de consciência foi apresentada pelos representantes da Reforma. A mais nociva predominância do poder secular sobre a religião foi promovida, graças ao reconhecimento, pela Reforma, das autoridades seculares como suprema nas questões religiosas. Assim surgiram, desde o início, as várias “igrejas nacionais protestantes”, totalmente discordantes do universalismo cristão da Igreja Católica e dependentes, de acordo com sua fé e organização, da vontade do poder secular. Nesse sentido, a Reforma foi o principal fator na evolução do absolutismo real. Em cada terra em que ingressou, a Reforma foi a causa de indescritível sofrimento para o povo; criou guerras civis que duraram décadas, com todos os horrores e devastações; as pessoas eram oprimidas e escravizadas; tesouros de arte incontáveis e manuscritos sem preço foram destruídos; entre os membros de uma mesma terra e raça a discórdia foi semeada. A Alemanha em particular, lar original da Reforma, foi reduzida a um estado de lastimável miséria pela Guerra dos Trinta Anos e o Império Germânico foi despejado da posição de liderança que ocupou por séculos na Europa. Só gradualmente e devido a forças que não se originaram da Reforma, mas foram condicionadas por outros fatores históricos, as feridas sociais foram curadas, mas a corrosão religiosa ainda hoje continua a despeito dos fervorosos sentimentos religiosos que sempre caracterizaram muitos seguidores individuais da Reforma.

IX - CONCLUSÕES

No que nos diz respeito, o “Aurélio” define a palavra cisma como a separação – ou cisão - do corpo e da comunhão de uma religião. Mas também a define como, simplesmente, uma dissidência de opiniões. Nesse sentido, vários cismas já ocorreram dentro da Igreja Católica Apostólica Romana – que, até a Reforma, tinha como sinônimo, o Cristianismo -, simplesmente Igreja, e penso ser natural que assim tenha sido. E explico as razões desse meu ponto de vista, procurando não me estender demais em questão tão complexa.
A primeira delas, por evidente, é que o Cristianismo, como outras religiões, mais ou menos antigas, são instrumentos criados, por inspiração divina ou não, pela humanidade e, como tal, passíveis de erros ou interpretações e daí a dissidência futura de opiniões.
No caso do Cristianismo, tal questão é muito mais profunda. O Cristianismo, que resultou desde cedo na Igreja Católica Apostólica Romana, pelo nascimento de Cristo, uma dissidência do Judaísmo surgida na terra dos judeus, é religião monoteísta. Sem considerar os milagres do Velho Testamento do Judaísmo (e posteriormente do Cristianismo), a religião dos hebreus não lhes criou tantos problemas de interpretação quanto o Cristianismo, a começar pelo fato de que os judeus continuam a esperar pelo seu Messias, isto é, o seu Deus encarnado que ainda não chegou, o que lhes poupou - e poupa - um sem número de dúvidas e explicações. Entretanto, muito se enganam os que pensam que dentro do judaísmo não houve e não há cisões. Na verdade, tais cisões foram tremendamente variadas e iniciaram tão cedo que já no início da época dos reis judeus, as doze tribos milenares se separaram em dois grupos: um de dez tribos e outro de duas tribos apenas. E o interessante é que a genealogia de Abrahão, o ramo considerado autêntico pelos judeus, que ficou com sua sede em Jerusalém, com o templo de Salomão, foi o grupo de duas tribos, sendo o outro grande grupo obscurecido pelo tempo e acabando por desaparecer por completo.
Quem imaginar que a Reforma de fato teria ocorrido por razões extraordinárias, é porque nunca leu sobre a história da Igreja que, desde a sua fundação, sempre contou com profundas dissensões internas de ordem doutrinária.
O Cristianismo, religião nascida com e por Jesus Cristo, segundo ela, Deus encarnado, que viveu como humano até os seus 33 anos, teve que produzir explicações convincentes sobre a existência simultânea do Deus espiritual que ninguém conheceu, e do Deus que existiu na Terra em forma humana, Cristo, além do Espírito Santo, conceito ainda mais complexa, numa religião monoteísta. Essa foi apenas uma das várias e complexas questões surgidas com o Cristianismo, para o qual, desde a sua fundação, os apóstolos, inicialmente, e os que prosseguiram em sua fundamentação e organização, posteriormente, tiveram que criar um conjunto de preceitos de direito eclesiástico – cânones – que resultaram, finalmente, numa Doutrina da Igreja. Foi essa Doutrina da Igreja, que sempre evoluiu e prossegue evoluindo, que desde a sua fundação foi cenário de infinitas discussões, dissidências, fundação de novas seitas ou ramificações e que, no passado, a Igreja conseguiu, de uma ou de outra forma, manter indivisa e única; até uma certa época, pelo menos. No início, as dissidências da doutrina da Igreja eram tratadas como heresias do Cristianismo e resolvidas sem rompimentos. É preciso também entender que nos primeiros anos do Cristianismo, além dele existia apenas uma outra religião monoteísta – o Judaísmo – já que o Budismo é muito mais uma filosofia de vida do que uma religião. Para quem quiser se aprofundar no assunto e saber como a Igreja evoluiu, eu aconselho a leitura de “Early History of the Christian Church”, de Louis Duchesne, principalmente o seu primeiro volume que trata do assunto desde a fundação da Igreja até o século III.
O primeiro cisma importante com que a Igreja se defrontou, foi o chamado “Grande Cisma do Ocidente-Oriente” ou “Cisma de 1054” ou “O Grande Cisma”, resultado de um processo muito gradual, cujas causas deveriam ser buscadas séculos antes de que houvesse suspeita de seu efeito final. Embora Roma sempre tenha reivindicado uma autoridade especial sobre as demais igrejas, pelo menos dois outros bispos, conhecidos como patriarcas, sempre mereceram posição destacada no Cristianismo: o Bispo de Alexandria e o de Antioquia. A esses se juntaram logo os Bispos de Constantinopla e Jerusalém, também confirmados como Patriarcas pelo Concílio de Calcedônia. Esses quatro bispos possuíam precedência sobre os demais bispos da Igreja. O Bispo de Roma, o Papa, mantinha um status mais elevado pela sua posição de sucessor de São Pedro, além de ter particular importância pelo fato de Roma ser a Capital do Império Romano, completando assim o quinto patriarcado. Mesmo depois que Constantino moveu a capital do Império Romano para Constantinopla (do Ocidente para o Oriente), em 330 DC, o Papa manteve sua posição de primeiro entre os iguais (primus inter pares) na hierarquia da Igreja. Sem entrar em maiores detalhes que aqui não cabem, diremos apenas que foram muitas as causas do Cisma, políticas e religiosas, que acabaram por separar da Igreja boa parte da cristandade, que passou a ser conhecida como Igreja Ortodoxa. A cisão foi tão forte que provocou, entre outras coisas, a excomunhão recíproca do Patriarca de Constantinopla, Michael I Cerularius e do Papa Leão IX, incidente somente encerrado com a reconciliação de 1965 entre o Papa Paulo VI e o Patriarca de Constantinopla Athenagoras I que anularam as excomunhões de 1054, num gesto simbólico de boa vontade que não constituiu qualquer espécie de reunião.
Trezentos anos após esse Grande Cisma, a sede papal foi transferida para Avignon e, em seguida, ocorreu o “Cisma do Ocidente”, quando a Igreja chegou a ter três Papas simultaneamente, conforme foi visto no texto. Finalmente, em 1517, a Igreja enfrentou a Reforma.
Nas duas primeiras grandes questões ou cismas, é importante notar que a doutrina da Igreja saiu praticamente intocada, embora pela primeira, a autoridade Papal tenha sido abandonada por parte da cristandade. O mesmo não aconteceu com a Reforma, quando praticamente várias religiões foram criadas, algumas com alterações fundamentais em relação à Igreja Católica, além do rompimento com o Papa. Na minha opinião, ao invés de complicar, isso talvez explique mais facilmente as razões da Reforma.
Para quem quiser realmente entender a Reforma, é preciso ter em mente que o real cristão necessita crer em coisas que dependem exclusivamente de fé, para as quais não há explicações materiais. Este é ponto de partida para tudo, inclusive a questão das indulgências. Ocorre que, antes da Reforma, os seus defensores eram todos religiosos cristãos e deveriam, portanto, crer e aceitar os pontos complexos; se não cressem, deveriam discutir as questões ao invés de cindir, que seria – e foi - o caminho mais fácil. É claro que Lutero, como padre católico, era instruído, honesto e poderia discordar e ter razão em parte de suas discordâncias da doutrina da Igreja Católica Romana. Como vimos isso sempre aconteceu desde o início e as diferenças sempre foram contornadas. Entretanto, a Igreja não poderia abrir mão da sua doutrina fundamental. Lutero teve a chance de discutir suas teses durante a Dieta de Worms, em 1521; ele as apresentou, discutiu, foi derrotado, mas continuou dissidente. Em consequência, foi excomungado e colocado fora da Lei, mas foi protegido por Frederick, o Sábio, Eleitor da Saxônia e desafiou o que aconteceu depois; a partir deste momento, a reforma tornou-se política. Em cima de sua revolta, outros aproveitadores surgiram e provocaram guerras sangrentas que jamais teriam surgido não fosse o seu movimento. Na verdade, as 95 Teses de Lutero poderiam ter sido discutidas em Wittenberg, onde foram lançadas.
Como sou obrigado a concluir, em minha opinião, as duas partes – Igreja Católica e Reformadores – tiveram culpa no desenvolvimento de cenário que surgiu e se desenvolveu. A Igreja Católica por não saber conduzir a questão, embora os motivos que a provocaram, transcendessem as questões religiosas; os Reformadores, por terem usado os motivos religiosos para conseguir a vitória final, unindo-se às razões materiais dos governantes locais. Muitas das reivindicações levantadas eram muito pouco importantes para terem as consequências e repercussão que tiveram. Tal é o caso, por exemplo, de terem a Bíblia e os ofícios religiosos praticados na própria língua dos seus países, algo que, mais tarde, até a própria Igreja Católica veio a praticar espontaneamente. Nunca houve concordância entre os diversos reformadores surgidos e logo as lutas internas iniciaram, sendo contestadas por Lutero, o que de pouco adiantou; e logo surgiram os múltiplos ramos do movimento. Mais do que isso, ostensivamente eles lutaram entre si e a maior prova disso é que as várias ramificações da Reforma vingaram exatamente nos países em que elas se originaram; só posterior e muito lentamente, cada uma dessas facções foi conseguindo mais adeptos, em geral ainda descendentes daqueles países.
Lutero e Zwingli, por exemplo, lutaram ostensivamente entre si. O primeiro gesto aberto de Zwingli contra um dos dogmas cristãos, foi comer salsichas durante a Quaresma em 1522, marcando o início da Reforma suíça. Enfrentando menos oposição do que Lutero enfrentara na Alemanha, conseguiu persuadir Zurich a aceitar a avassaladora Reforma; mas como Lutero, logo foi também confrontado por reformadores mais radicais do que ele próprio.
De forma geral, praticamente todas as objeções inicialmente levantadas pelos reformadores poderiam ter sido resolvidas pelas duas partes. Não foram porque outras bandeiras, de ordem material – mas principalmente política, como consequência do próprio Renascimento -, foram levantadas, pelos reformadores, que interessavam sobremaneira aos governantes locais. A Igreja acumulou, ao longo dos tempos, por força de doações para justos fins, um importante patrimônio que causava inveja aos governantes dos feudos da época. A bandeira de desapropriação de bens materiais e terras da Igreja caiu como uma luva às pretensões dos poderosos e falidos senhores feudais daquela época. Com isso, eles não apenas permitiram a cisão, como a estimularam, além de, muitas vezes, obrigarem os seus súditos a abraçar as ideias da Reforma nos vários países onde ela se desenvolveu. Basicamente, o poder feudal acabou por dominar a Reforma em função dos bens da Igreja que passariam aos senhores feudais.

A grande verdade é que a Reforma inflamou na Europa uma conflagração de violência sem paralelo. Devastou a Cristandade ocidental por mais de um século, trazendo consigo violento ódio e intolerância que, em algumas comunidades cristãs, perdura até os dias de hoje. Nenhuma disputa, em qualquer outra religião, igualou a força destrutiva, a brutalidade e amargura iniciada em Wittenberg em 1517. Apenas como ilustração e como assunto para meditar, lembremos a Guerra dos Trinta Anos, consequência mais distante da Reforma, que causou um número estimado entre 3 e 11 milhões de mortos.

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