Homenagem ao lendário herói ancestral dos ingleses que deu título a um dos considerados "Cem Maiores Livros do Mundo" e tido como o mais antigo escrito em "Old English".

segunda-feira, 6 de maio de 2013

CHARLES TRENET - MAIS UM HUMILDE RECONHECIMENTO

Da mesma forma que um entreato é preenchido por uma curta melodia que, em geral, quebra o contexto de uma ópera, esta postagem aqui surge para alternar, de um assunto que pode, para alguns, ser um tanto pesado, para algo mais leve e relaxante. Surgiu ela para vir jogar ao lado dos tão pouco reconhecidos compositores de músicas populares, para não entrar no ramo erudito. Vejam se não é verdade.
Alguém já ouviu antes o nome de Charles Trenet? Quem sabe qual foi o autor de “La Mer”? Que canção é essa, “La Mer”? E que tal então "Beyond the Sea"? Nada ainda? Pois é, canta-se, assobia-se uma melodia, em francês, em inglês, por mais de 70 anos sem saber quem foi o gênio responsável por sua criação e sem nada saber desse gênio. É apenas por essa razão que, de vez em quando, ouvindo uma música conhecida, resolvo pesquisar e escrever sobre ela, na tentativa de "dar a Cesar o que é de Cesar", propagando um pouco mais da criatura e do criador. Então vamos lá, com calma, tentar resgatar um pouquinho dessa formidável criatura que foi Charles Trenet e suas criações. Eu recomendo esse artigo aos leitores que apreciam a velha e romântica música e boemia francesas, bem como as coisas simples da vida.
A alma do poeta voou como um anjo de Jean Cocteau, deixando ao mundo uma obra impressionante e variada: perto de 1000 canções, filmes, um punhado de romances, pinturas, uma vida longa, rica, apaixonada e apaixonante, que enriqueceu o século XX, legando à civilização, sobretudo, uma verdadeira filosofia de bondade.
Charles Trenet em pose característica
2013 é o ano em que os franceses comemoram o centenário de nascimento do compatriota Charles Trenet, o inventor da canção moderna, introdutor do suingue e da poesia, o poeta da juventude, da felicidade, da alegria de viver. Entretanto, atrás desta fantasia efervescente e desta máscara de Pierrô iluminado, o homem dissimulava seus abismos íntimos sob o verniz de uma enorme leveza. Assim, mais que qualquer outro, o “Insano Cantante”, como era chamado, também cantava a morte, a solidão, a tristeza, a desolação ou o abandono. “Onde estaria o preço da alegria se nós não a perdêssemos jamais?”, escreveu ele de certa feita.
Louis-Charles-Augustin-Claude Trenet nasceu em Narbonne, em 18 de maio de 1913, filho do tabelião Lucien, um melômano que orientou os filhos no caminho da música, e de Marie Louise. Teve um irmão mais novo, Antoine. A mãe abandonou a família quando Charles tinha 7 anos para seguir o famoso cenarista e diretor de cinema Benno Vigny.
Narbonne, ao sul da França, a cidade que viu nascer Trenet
Narbonne é uma cidade do sudoeste da França na região de Languedoc-Roussillon, a 849 km de Paris, no departamento de Aude, do qual é uma subprefeitura. Está ligada ao Canal du Midi e ao Rio Aude através do Canal de la Robine, que passa pelo centro da cidade. Narbonne foi a primeira colônia romana fora da Itália, estabelecida na Gália em 118 AC.
Em 1922, morando em Perpignan, onde cresceu, Charles é mandado para um internato em Beziers onde muito sofreu psicologicamente. Convalescendo de uma febre tifoide, volta para casa, quando emerge sua sensibilidade artística (modelagem, música e pintura).
Aos 15 anos, vai para Berlin viver com a mãe e o já segundo marido, Benno Vigny, que lhe oferece a possibilidade de frequentar uma escola de arte, onde passa a circular entre as celebridades do cinema alemão.
O jovem Charles Trenet
Em 1930 volta à França e, com a permissão do pai, entra para a "École des Arts Décoratifs". Terminado o curso, trabalha como assistente de direção e assessor nos estúdios cinematográficos franceses, onde conhece Antonin Artaud, Jean Cocteau e Max Jacob, e tem seus primeiros poemas e livros editados.
Benno Vigny volta a Paris com Marie-Louise, para rodar um musical. Para trabalhar na equipe, como compositor das quatro canções que faziam parte do roteiro, Charles se matricula e passa no exame da SACEM (espécie de sindicato francês de músicos, compositores e editores).
Em 1933, conhece um jovem pianista, Johnny Hess, com quem forma o duo "Charles et Johnny". A dupla compõe jingles publicitários para rádio e faz muito sucesso mesclando música francesa tradicional com as tendências modernas. Charles escreve, Johnny compõe. A parceria rende 16 títulos e um contrato com a gravadora Disques Pathé. O duo acaba com a chegada do serviço militar obrigatório para os dois artistas mas, antes de partir, deixam para Jean Sablon gravar uma canção feita em cinco minutos - letra rabiscada num guardanapo de papel -, a obra-prima “Vous qui passez sans me voir”, de 1937, aqui interpretada pelo autor. Para acompanhar a interpretação, com a letra da música e a sua tradução, clicar neste link.
Maurice Chevalier, impressionado com a popularidade de Trenet, decide colocar em seu repertório uma canção que achava "meio sem pé nem cabeça", "Y'a d'la Joie", sucesso estrondoso e imediato nos vaudevilles de Paris.
Em seguida Trenet passa a interpretar suas próprias canções e, para isso, cria um visual original usando sua experiência de artista plástico: aba do chapéu arredondada como uma auréola (para disfarçar o rosto redondo), terno vermelho e sorriso constante, iluminado pelos olho azuis: um showman de primeira qualidade. Ironicamente, entretanto, entre as “palhaçadas” do ato, ele realmente sofria de profundo pânico do palco, que nunca venceu totalmente, mas aprendeu a mascarar mais tarde. Em 1938 compõe e interpreta “Menilmontant”, uma linda canção que evoca um famoso bairro operário de Paris onde, entre outros boêmios, nasceu Edith Piaf e estreou Maurice Chevalier, um de seus primeiros grandes sucessos. A letra original e a tradução podem ser apreciadas neste clicando aqui.
Alistado na Força Aérea Francesa, raspou a cabeça e ostentava um monóculo, atributos que lhe davam uma aparência bizarra e que lhe granjearam o apelido de “O Insano Cantante”.
Durante a segunda guerra mundial, mesmo sendo um homem marcado pelas suas preferências sexuais e pela amizade com artistas judeus, Charles Trenet resolve continuar na França, onde suas canções, verdadeiros hinos à liberdade, são censuradas pelo governo de Vichy. Durante a ocupação nazista, "Douce France" torna-se o hino da Resistência (acompanhe a interpretação de Trenet clicando na letra de Douce France). A imprensa colaboracionista sugere então que o sobrenome Trenet seria um anagrama de Netter e Charles teve que provar que em quatro gerações de sua família não havia nenhum judeu.
Em 1943, Trenet compõe sua obra prima "La Mer", que ficou três anos nas paradas. Trenet escreveu a letra dessa canção em um trem, enquanto viajava pela costa mediterrânea francesa voltando de Paris para Narbonne. Supostamente, a composição demorou 10 minutos para ser finalizada, em papel higiênico fornecido pela SNCF (Société Nationale des Chemins de fer Français; Rede Ferroviária Francesa). Leo Chauliac o ajudou na composição da melodia, que foi originalmente publicado por Raoul Breton. A canção foi primeiramente oferecida à cantora Suzy Solidor, que a rejeitou dizendo que “canções sobre o mar me aparecem umas dez por dia”. Em 1946, Raoul Breton convence Trenet a cantar ele mesmo a composição e, claro, La mer foi sucesso imediato na França, entrando, de uma vez por todas, para o hall de clássicos da chanson française. Para ouvir essa maravilhosa melodia, interpretada em cena para o público, por seu autor Charles Trenet, acompanhado pela orquestra de Raymond Lefèvre, basta clicar em "La Mer" ... e sonhar. A letra original e sua tradução podem ser acompanhadas pelo link letra de La Mer. A canção possui mais de 400 versões nas mais diversas línguas. Uma das principais adaptações é a de Jack Lawrence, intitulada, na língua inglesa, "Beyond the Sea", interpretada notadamente por Bobby Darin (e também por Bing Crosby), em 1960, quando ficou internacionalmente conhecida, já tendo sido utilizada como trilha sonora de diversos filmes. Entre tantos cantores que gravaram essa inesquecível melodia, gostaria de mencionar uma francesa, Mireille Mathieu e um americano, Rod Stewart, embora a gravação original, com o compositor, seja imbatível. É do mesmo ano de 1943, sua linda composição "Que Reste-t il de nos amours", também vertida para o inglês com o título "I Wish You Love", gravada por Nat King Cole, Rod Stewart, The Bachelors, entre outros, e tendo servido de trilha sonora para, pelo menos, dois filmes, um dos quais “Terapia do Amor”. Os leitores podem acompanhar a melodia, interpretada por seu autor, clicando no link da letra correspondente.
Cantor, compositor, letrista de cerca de mil canções, artista plástico, poeta e escritor, Charles Trenet revolucionou a música francesa nos anos 40 com versos inspirados e estética semelhante aos poemas de Paul Éluard e Jacques Prévert. Por sua vez, influenciou compositores e intérpretes que lhe sucederam, como Charles Aznavour, Jacques Brel e Georges Brassens.
Terminada a guerra, Charles Trenet parte para conquistar os Estados Unidos, onde se torna amigo de George Gershwin, Duke Ellington, Louis Armstrong, Chaplin e da dupla "O Gordo e o Magro". E em seguida veio o resto do mundo. Esteve várias vezes no Brasil entre 1947 e 1955, onde sua popularidade era imensa. Em 1952 compôs a maravilhosa valsa “L’âme des poètes”, uma melodia triste, de reminiscências, onde demonstra todo o seu talento de poeta. Acompanhe a interpretação de Trenet com a letra original e sua tradução. Seu sucesso durou até os anos 60, quando a febre do rockn'roll alcançou a França dando lugar a Johnny Holliday, Richard Anthony e Françoise Hardy.
Charles Trenet na década de 50
Em 1963, foi vítima de uma armação, encenada pelo ex-cozinheiro-motorista-secretário que o acusava de recrutar jovens efebos para partcipar de festinhas íntimas. Ficou preso para averiguações por um mês e, depois do julgamento, foi condenado a um ano de prisão e multa de dez mil francos, sendo beneficiado com sursis. Durante a estadia na prisão escreveu uma prece para os prisioneiros e uma canção para o carcereiro.
A longevidade de Trenet foi uma surpresa até mesmo para ele que, pretendendo aposentar-se na década de 1970, fazia um tour de despedida pela França e concordou com o pedido de um concerto de despedida no Canadá; teve uma recepção tão encorajadora que preferiu continuar se apresentando.
Em 1977, a morte da mãe, com quem mantinha forte ligação, o deixou recluso por dez anos. Esta semi-aposentadoria aconteceu numa mansão do sul da França, onde escreveu muitos romances e um livro de memórias: "Mes jeunes années" (Meus anos de juventude).
Trenet na década de 1970
Em 1983, lançado candidato à Academia Francesa, sofreu duplo preconceito: foi impedido por não compor música "inteligente" e por ser homossexual declarado. Mas, como se servisse de compensação, recebeu muitas homenagens, como a Légion d'Honneur e o Grand Prix National des Arts et Lettres.
Retomando à carreira em 1987, lançou, dois anos depois, seu último disco sempre com a mesma temática - infância, alegria e amor - e se engajou na campanha de François Mitterrand e Jack Lang na eleição presidencial francesa de 1988.
Encontrava-se ainda trabalhando na década de 1990, um período em que pelo menos quatro CDs de seus trabalhos foram liberados, incluindo uma coleção “o melhor de” produzida pelo inglês Tony Watts. Aos oitenta anos de idade, ainda apresentava uma entusiástica aparência, um amplo sorriso coberto por escasso cabelo vermelho que o fazia parecer exatamente como o artista de teatro de variedades antigo que ele era.
Aos 85 anos, em julho de 1998, canta no festival de Nyon, na Suíça, para uma plateia de 20 mil pessoas, que faz coro (por conhecer de cor) ao seu repertório legendário. Depois, na Sala Pleyel, em Paris, o público emocionado também aplaude com emoção o ídolo que se movimenta com muita dificuldade, mas canta com o mesmo entusiasmo dos vinte anos. "Quem veio ao meu show está dispensado de ir a meu enterro", teria dito Charles Trenet, pouco antes de morrer, nesta sua última apresentação.
Em abril de 2000, o cantor sofre um acidente cardiovascular, se restabelece e comparece à inauguração do pequeno museu instalado na casa natal, em Narbonne, situada na Avenida Charles Trenet 13, onde objetos, partituras e fotos de seu percurso artístico levam o visitante a conhecer sua vida familiar, evocando em particular a figura da mãe, Marie Louise, que ali viveu muito tempo.
Charles Trenet desejava morrer como um poeta: "Eu quero ir voando", dizia, ao falar da morte. E assim foi: voou em paz, durante o sono, na madrugada do domingo 19 de fevereiro de 2001, na cidade de Créteil, França. Ao saber da sua morte, o presidente da França, Jacques Chirac, declarou: "Trenet era símbolo de uma França sorridente e criativa, figura muito próxima de cada um de nós".

2 comentários:

Edificio Saint Germain disse...

Simplesmente maravilhoso!

Nelson Azambuja disse...

Meu caro "Edíficio Saint Germain".
Muito obrigado por seu comentário generoso. Vamos continuar escrevendo para tentar merecer mais comentários como esse.
Abraço,
Nelson Azambuja