III - AS CIVILIZAÇÕES PRIMITIVAS – PANORAMA GERAL
Will Durant, ao final do Capítulo VI do seu primeiro livro (de um total de onze), diz que aquele capítulo “de questões irrespondíveis, deveria terminar com a indagação ‘Onde a Civilização começou?’ – que é também uma questão irrespondível.” E acrescenta que se pudéssemos confiar nos geólogos e arqueólogos, as regiões da Ásia Central teriam sido uma vez úmidas e temperadas, alimentadas por grandes lagos e abundantes rios. A recessão da última era glacial teria secado essa área até que a chuva mostrou-se insuficiente para suportar cidades e estados, que foram abandonados pelos habitantes em busca do oeste, este, norte e sul em busca da água para sua sobrevivência. Muitos acreditam que essas regiões agora moribundas, viram o primeiro desenvolvimento substancial daquele vago conceito que constitui o que chamamos de civilização. Com o passar dos anos e com as descobertas que eles trazem, torna-se cada vez mais provável afirmar que foi o rico delta dos rios da Mesopotâmia que viu as primeiras cenas conhecidas do histórico drama da civilização.
Figura 1 - O Nilo no Egito, Tigre e Eufrates no Iraque, Indo no Paquistão |
As primeiras civilizações surgiram no mundo ao final do quarto e durante o terceiro milênio AC, em algumas áreas da Ásia e no norte da África. Os três grandes sistemas aluviais do Tigre-Eufrates, Nilo e Indo suportaram três grandes civilizações antigas (Fig. 1). Outras comunidades urbanas também surgiram durante esta época. Por exemplo, colinas de povoamentos conhecidos como tells ou tepes[1], ocorreram na maioria dos maiores vales entre o Iraque e o Paquistão, numa direção, e entre o Mar Cáspio e o Oceano Índico, na outra direção (Fig. 2). Contudo, diferentemente das grandes civilizações do Egito, Mesopotâmia e Indo, essas unidades não formaram um sistema econômico unificado e, embora claramente capazes de suportar, por algum tempo, sociedades grandes, ricas e organizadas, eram muito mais fracas do que as vastas civilizações das baixas terras aluviais.
Figura 2 - Localização geral das Civilizações menores |
Das três mencionadas, a civilização da Mesopotâmia (primeiro a Sumeriana e, posteriormente, a Assíria e a Babilônica[2] ), foi a primeira na origem e, em muitos sentidos, a melhor entendida, acessível pela arqueologia e por documentos escritos. A cultura Mesopotâmica, embora separada de nós por mais de 4.000 anos, ainda permite enxergar a herança da antiga Suméria em muitas tradições atuais, transmitida através da passagem aos babilônios e assírios e, então, pelo empréstimo aos hititas[3] , fenícios[4] e, finalmente, aos gregos. Traços específicos que nos conduzem de volta à Suméria incluem, no campo da matemática, a posição numérica, onde o valor de um número é determinado por sua posição numa sequência de algarismos (como no sistema decimal) e o sistema sexagesimal, pelo qual se divide o horário e o círculo; no mundo da religião, o conceito da força criativa da palavra divina e a história do Dilúvio Universal.
A arqueologia finalmente estabeleceu que a civilização surgiu inicialmente ao sul da Mesopotâmia, antes de em qualquer outro local. Conglomerados populacionais urbanos, arquitetura importante e escrita já existiam cerca de 3500 AC, embora só fossem aparecer no Egito séculos após. No vale do Indo, mesmo a fase pré–Harappana ou Harappana[5] inicial, com suas pequenas cidades fortificadas, não começou antes de 3000 AC e a escrita não era conhecida antes da fase Harappana madura, que não pode ser datada antes de 2500 AC É mesmo possível que as duas civilizações, a Egípcia e a Indo, bem como as civilizações posteriores da Ásia Ocidental, tenham derivado da Suméria. Aqui devemos considerar a evidência a favor do ponto de vista de que a civilização difundiu-se deste centro e compara-la com a evidência para o desenvolvimento da civilização em áreas independentes. Inicialmente trataremos das civilizações egípcia e Vale do Indo e, posteriormente, com os centros menores de vida urbana na Ásia ocidental.
Inicialmente, é preciso deixar bem claro não haver dúvidas: o estabelecimento das civilizações Egípcia e Indo não foi efetivada por colonizadores da Suméria. Não há semelhanças próximas de cultura de qualquer espécie; de fato, é difícil enfatizar suficientemente as diferenças entre essas civilizações. As similaridades existentes são a nível conceitual: a prática da agricultura irrigada, a existência de cidades, de arte e arquitetura monumentais, a escrita, o uso do tijolo de lama e assim por diante. A natureza real dos trabalhos de irrigação, a forma das cidades e seus prédios e a natureza da linguagem escrita são completamente diferentes nas três áreas.
Na Suméria havia 15 a 20 grandes cidades, cada uma delas cercada por cidades menores, vilas e povoados. No Indo, ao contrário, havia duas enormes metrópoles e uma grande quantidade de assentamentos menores, sem cidades de porte médio entre elas. No Egito nada se sabe de quaisquer cidades do período inicial, mas o padrão posterior mostrava umas poucas cidades maiores e assentamentos de pequeno e médio porte entre elas, arranjados segundo um padrão linear imposto pela natureza, ao longo do vale do rio Nilo, em contraste com o padrão surgido no sistema fluvial duplo da Mesopotâmia ou o sistema fluvial múltiplo em Indo. As cidades em si eram também muito diferentes: a rígida disposição quase militar das cidades de Indo, nos seus planos bem definidos, contrasta fortemente com o tipo das cidades da Mesopotâmia, com suas vielas tortuosas e o aspecto de terem crescido de acordo com as circunstâncias, sem os benefícios de um plano urbano preconcebido.
Os sistemas de escrita também provêm um excelente exemplo: a escrita mais antiga nas três áreas era basicamente pictográfica[6] , mas os símbolos utilizados para representar um objeto particular eram completamente diferentes. Os estilos artísticos das três civilizações são também totalmente diversos. Na verdade, é muito difícil encontrar qualquer similaridade entre eles, exceto ao nível geral como dito acima. Além disso, há muito pouca evidência direta de contato entre as três civilizações, ou, para ser preciso, entre a Mesopotâmia e qualquer das duas outras, já que não existe qualquer tipo de evidência do contato entre Egito e o Indo. No Egito há evidências de contato com a Mesopotâmia, no período imediatamente anterior à Primeira Dinastia (iniciada cerca de 3100 AC). Os únicos objetos relevantes identificados são três lacres cilíndricos do final do período Uruk ou Protoliterato[7] . Após esse tempo, os próprios egípcios usavam os lacres cilíndricos (mas como amuletos, pois não tinha utilidade como lacres, já que não usavam argila para escrever), gravados com desenhos locais; seu uso é normalmente atribuído à influência mesopotâmica.
A situação no vale do Indo é diferente. Há evidência de contato entre a área do Indo e a Mesopotâmia durante o último período da civilização Harappana (2500-1900 AC), que corresponde ao final dos períodos sumerianos de Início da Dinastia Sargônida, Terceira Dinastia de Ur[8] e Larsa[9] . Contudo, este contato toma a forma, principalmente, das manufaturas Indo na Mesopotâmia: há apenas alguns poucos objetos dela na área Indo e leves vestígios da influência mesopotâmica em motivos artísticos e na aparência de poucos lacres cilíndricos.
O que isso retrata é a evidência de três processos fundamentalmente independentes de desenvolvimento de civilização nos vales aluviais do Nilo, Tigre-Eufrates e sistema do Indo. Houve contato entre a Mesopotâmia e as duas outras áreas, mas apenas com influência periférica, que afetou algum aspecto do estilo das civilizações em desenvolvimento.
No passado, muitos estudiosos sentiram que a invenção da escrita tinha tão especial natureza que devia ter sido inventada apenas uma (na Suméria, uma vez que lá apareceu primeiro) e então se espalhado para outras áreas. Contudo, as escritas egípcia e indo são totalmente diferentes da escrita da Mesopotâmia, não apenas da desenvolvida cuneiforme, mas também da pictográfica anterior.
O homem do Paleolítico superior que riscava símbolos abstratos em pedaços de ossos, teve a ‘ideia de escrever’, como fez seu sucessor do Mesolítico que pintava sinais em seixos. O que lhes faltou foi alguma espécie de necessidade social para um sistema organizado de escrita. Esta surgiu somente com o desenvolvimento de complexas organizações econômicas e sociais, parte da Revolução Urbana. Quando a necessidade surgiu, as populações suméria, egípcia e indo, individualmente, inventaram a escrita para resolver o problema. As figuras e sinais abstratos que usavam costumeiramente com objetivos decorativos foram assumidos, recebendo significados convencionais padronizados e uma escrita primitiva nasceu. Somente na Mesopotâmia a escrita em sua forma primitiva original é encontrada, mas isso é, provavelmente, um acidente de sobrevivência arqueológica, surgindo dos diferentes materiais de escrita utilizados nas três civilizações. Contudo, futuras escavações adicionais podem vir a encontrar evidências mostrando antigos exemplos de escritas egípcia e indo no processo de formação.
Assim, para todas as finalidades e planos, as civilizações egípcia e indo se desenvolveram independentemente da Mesopotâmia. Entretanto, as cidades do Golfo Pérsico, alto vale do Irã, Afeganistão e Turquemenistão são diferentes. Essas cidades surgiram, nas primeiras três áreas, como um resultado da demanda, surgida nas grandes civilizações dos vales, por materiais naturais disponíveis nessas áreas costeiras e de terras altas. Assim vistas, as cidades dessas áreas eram secundárias, mas não devem ser vistas como simples derivativas da civilização suméria ou indo. Nesse sentido, há dois pontos a serem enfatizados. O primeiro é que nenhuma dessas cidades foi colônia da Mesopotâmia ou do Vale do Indo (em contraste com a colônia assíria em Kultepe, Anatólia[10] , no segundo milênio AC), mas apenas se aproveitaram da oportunidade de enriquecer pelas demandas das grandes civilizações. O segundo ponto é que essas comunidades haviam atingido um nível considerável de desenvolvimento social e econômico (embora sem a plena civilização) antes de se tornarem grandes cidades através da participação comercial com a Mesopotâmia e o Indo. A evidência arqueológica indica que materiais naturais demandados na Mesopotâmia e no Vale do Indo, haviam sido descobertos e explorados (embora em escala pequena quando comparada ao desenvolvimento posterior) pelas comunidades locais antes do final do quarto milênio AC, quando a demanda da Mesopotâmia tornou-se realmente forte. Assim, o surgimento de cidades no golfo Pérsico e alto Irã e Afeganistão foi devido, em parte, ao desenvolvimento local, que teve um estímulo adicional pelo crescimento do comércio de materiais naturais necessários às grandes civilizações. Contudo, essa explicação não se aplica ao desenvolvimento de cidades do Turkemenistão. Parece mais provável que nessa área houvesse outro centro independente de desenvolvimento de vida urbana, embora aqui o desenvolvimento nunca tenha alcançado o nível atingido na Mesopotâmia, Egito ou Vale do Indo.
Cidades em outros locais da Ásia oriental, que surgiram bem mais tarde, no segundo milênio AC, foram obviamente baseadas nas da Mesopotâmia. As cidades hititas da Anatólia, por exemplo, ou as cidades da costa Levantina (costa leste do Mediterrâneo, desde a Turquia até o Egito) como Ugarit e Byblos, embora com um carácter marcadamente local, mostra vários traços de influência mesopotâmica. Por exemplo, a escrita cuneiforme Akkadiana[11] era usada nas duas áreas (bem como as escritas locais) e os estilos de arte em ambas evidenciam várias caraterísticas mesopotâmicas; no Levante, a influência egípcia também é parente. E no Irã oriental, a civilização Elamita[12] , que se desenvolveu a partir das cidades Proto-Elamita, tornou-se mais mesopotâmica em caráter com o passar do tempo, finalmente adotando a escrita cuneiforme em lugar da pictográfica original Proto-Elamita, embora usando-a ainda como linguagem local. Estas últimas civilizações da Ásia ocidental, conscientemente adotaram muitas práticas e ideias mesopotâmicas, especialmente as hititas e fenícias, e através delas, estas foram transmitidas à cultura atual.
[1] Um tell ou tepe é um tipo de empilhamento arqueológico artificial de pedras ou terra criado por ocupação e abandono humano de um local geográfico por vários séculos. Um tell clássico assemelha-se a um tronco de cone baixo, uma colina criada por muitas gerações vivendo e reconstruindo sobre o mesmo local; com o tempo a altura cresce formando o empilhamento arqueológico. O maior contribuinte isolado à massa do tell são os tijolos de argila, que se desintegram rapidamente.
[2] Pedimos um pouco de paciência aos nossos leitores, pois todos esses nomes serão vistos com todo o detalhe, oportunamente.
[3] Os Hititas foram um povo da Anatólia que estabeleceram um império em Hattusa (norte-centro da Anatólia), cerca de 1600 AC. Tal império alcançou o seu auge em meados do século 14 AC, sob Suppiluliuma I, abrangendo uma área que incluía a maior parte da Ásia Menor bem como partes do Levante norte e da Mesopotâmia superior. Após 1180 AC o império chegou a um fio com o colapso da Idade do Bronze, fragmentando-se em várias cidades-estados independentes, algumas das quais sobreviveram até o século VIII AC.
[4] A Fenícia foi uma civilização da antiguidade cujo epicentro se localizava no norte da antiga Canaã, ao longo das regiões litorâneas dos atuais Líbano, Síria e norte de Israel. A civilização fenícia foi uma cultura comercial marítima empreendedora que se espalhou por todo o mar Mediterrâneo durante o período de 1500 a 300 AC.
[5] Harappa é um sítio arqueológico em Punjab, Paquistão oriental, cerca de 24 km a oeste de Sahiwal. A atual vila de Harappa fica a 6 km do antigo sítio. Por convenção arqueológica para denominação de uma civilização anteriormente desconhecida, pelo sítio escavado, a Civilização do Vale do Indo é também chamada de Civilização Harappana.
[6] A Pictografia é a forma de escrita pela qual ideias e objetivos são transmitidos através de desenhos. Suas origens na antiguidade são a escrita cuneiforme e dos hieróglifos.
[7] O período Uruk (cerca de 4000 a 3100 AC) ocorreu na história da Mesopotâmia seguindo o período Ubaid e seguido pelo período Jemdet Nasr, sendo também chamado de Período Protoliterato. Sua denominação vem da cidade sumeriana de Uruk. Foi durante esse período que a pintura cerâmica declinou, à medida que o cobre tornava-se popular, junto com os lacres cilíndricos.
[8] Ur foi uma importante cidade-estado suméria da Mesopotâmia antiga, localizada ao sul do atual Iraque, outrora uma cidade costeira próximo da foz do rio Eufrates, no Golfo Pérsico, e agora interior por força do seu recuo, a 16 km de Nasiriyah. A cidade data de cerca de 3800 AC e na história escrita aparece registrada como cidade-estado desde o século XXVI AC, tendo como seu primeiro rei registrado Mesh-Ane-pada. Considerada por muitos como a cidade de nascimento do patriarca hebreu Abraão.
[9] A cidade de Larsa tornou-se uma força política durante o período Isin-Larsa, após o colapso da Dinastia Ur-III, cerca de 1940 AC. Ishbi-Erra, um oficial de Ibbi-Sin, último rei da Dinastia Ur-III, mudou-se para Isin como sucessor daquela dinastia e de lá tomou Ur e as cidades de Uruk e Lagash, à qual se submetia Larsa. Acabou rompendo com Isin, estabelecendo uma dinastia independente em Larsa.
[10] Anatólia, ou península anatoliana, também conhecida como Ásia Menor, denota a protrusão ocidental da Ásia, que compõe a maior parte da República da Turquia. A região é banhada pelo mar Negro, ao norte, o mar Mediterrâneo, ao sul e o mar Egeu, a oeste. O mar de Mármara forma uma ligação entre os mares Negro e Egeu, através dos estreitos de Bósforo e Dardanelos, separando a Anatólia da Trácia, no continente europeu.
[11] O Império Akkadio (também chamado Império Akkadiano ou Império da Akkad) foi um Estado mesopotâmico semita do milênio III AC, centrado na região da Acádia e com capital na cidade homônima. Surgiu em 2.334 AC como resultado das inúmeras campanhas militares de Sargão e compreendeu uma área que ia da Síria até a Baixa Mesopotâmia. Existiu por dois séculos, desintegrando-se durante o reinado de Shu-Turul devido a inúmeras revoltas internas e a pressão de tribos nômades como os gútios.
[12] Elam ou Elão, por vezes referida como Susiana, foi uma civilização da antiguidade localizada no território que corresponde ao atual sudoeste do Irã, estendendo-se desde as terras baixas do Cuzestão à província de Ilam, bem como uma pequena parte do sul do Iraque.
Na próxima postagem, PARTE 3.
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