Homenagem ao lendário herói ancestral dos ingleses que deu título a um dos considerados "Cem Maiores Livros do Mundo" e tido como o mais antigo escrito em "Old English".

domingo, 23 de novembro de 2014

AS TRÊS PRIMEIRAS GRANDES CIVILIZAÇÕES MUNDIAIS: MESOPOTÂMIA (PARTE 03)

IV – MESOPOTÂMIA

A palavra Mesopotâmia, etimologicamente, origina-se do grego, com o significado de “(terra) entre rios”. Geograficamente é o nome da área do sistema fluvial dos rios Tigre e Eufrates, correspondente ao atual Iraque, a região nordeste da Síria, uma parte menor ao sudeste da Turquia e partes menores do sudoeste do Irã e do Kuwait. As duas figuras que seguem (Figuras 1 e 2) mostram a localização da Mesopotâmia; na primeira, a região da Mesopotâmia é mostrada em verde escuro, iniciando um pouco ao sul da Turquia e terminando no Golfo Pérsico; na segunda, de forma mais esquemática, em amarelo (dentro do rosa), pode-se ver a sua localização em relação aos países atuais da região.
Figura 1
Mesopotâmia é o nome de uma área - e não de um país -, que possuiu, durante diversas épocas, fantásticas cidades e mesmo regiões que, a seu tempo, foram sedes de importantes impérios ou ricas culturas que floresceram no Iraque antigo, tais como: Suméria, Akkadiana, Assíria, Babilônia e muitas outras cuja influência estendeu-se a países vizinhos, a partir de 5.000 AC. Ela tem sido chamada de “o berço da civilização” porque a agricultura (irrigada ou não), criação e domesticação de animais se desenvolveram lá, muito antes do que em qualquer outro lugar.
Figura 2
A região da Mesopotâmia costuma ser dividida em duas partes: a Mesopotâmia Superior ou Norte, também conhecida como Al-Jezirah (a ilha), é a área entre o Eufrates e o Tigre, desde suas nascentes até Bagdá; a Mesopotâmia Inferior ou Sul consiste do sul do Iraque, Kuwait e partes do Irã Ocidental. Até as conquistas muçulmanas, a área era designada por Mesopotâmia; após aquela data, palavras como Síria, Jezirah e Iraque passaram a ser utilizadas para designar a área.
Há pelo menos duas formas de estudar a civilização mesopotâmica: (1) apreciá-la no conjunto de toda a região; e (2) analisar individualmente os vários impérios que a dominaram ao longo da antiguidade e que, mesmo dominantes no todo, sempre tiveram ascensões e quedas. Nós vamos tentar um misto das duas coisas; faremos, inicialmente, uma exposição sobre os aspectos gerais da Mesopotâmia, não influenciados pelo governo da época, sempre que isso for possível; posteriormente, faremos uma breve descrição dos maiores impérios que dominaram a região, no que se refere às suas mais importantes especificidades, considerando que os aspectos gerais da região já terão sido descritos.

IV.1 - GEOGRAFIA

A Mesopotâmia abarca a área entre os rios Tigre e Eufrates, ambos com as nascentes nas montanhas da Armênia, na Turquia moderna, alimentados por numerosos tributários e drenando uma vasta região montanhosa. As rotas terrestres na Mesopotâmia usualmente seguem o Eufrates, já que as margens do Tigre são frequentemente íngremes e difíceis. O clima da região é semiárido, com uma vasta extensão desértica ao norte que cede lugar a uma região de pântanos, lagoas, alagadiços e margens de juncos, com 15.000 km2, ao sul. No extremo sul, o Tigre e o Eufrates se unem para despejar suas águas no Golfo Pérsico. Trata-se de um ambiente árido, com terras ao norte onde a agricultura é mantida apenas com água da chuva, até a área ao sul onde apenas a agricultura irrigada subsiste, a partir do lençol freático alto e das águas nivais dos altos picos das Montanhas Zagros (noroeste do atual Irã) e da Cordilheira Armênia. A utilidade da irrigação depende da habilidade em mobilizar mão de obra suficiente para a construção e manutenção de canais, o que, nos tempos primitivos, foi fator fundamental para os assentamentos urbanos e sistemas centralizados de autoridade política.
Por toda a região, a agricultura foi complementada pelo pastoreio nômade que criava ovelhas e cabras (e mais tarde camelos) com as pastagens marginais, nos meses secos de verão e nas terras de pastagens das orlas desérticas dos invernos úmidos. A área sempre foi muito carente em pedras de construção, madeira e metais preciosos e, historicamente, foi obrigada a fiar-se a um comércio de produtos agrícolas de longa distância para garantir tais itens de áreas externas. Nas áreas pantanosas do sul, uma complexa cultura de pesca sempre existiu desde tempos pré-históricos, adicionada ao caldo cultural.
Interrupções periódicas no sistema cultural ocorreram por várias razões. A demanda por trabalho, de tempos em tempos, conduziam a aumentos de população que beiravam os limites da capacidade ecológica; se um período de instabilidade climática seguisse, sobreviria o colapso do governo central e a ocorrência do declínio da população. Por outro lado, a vulnerabilidade a invasões militares por tribos das colinas marginais ou pastores nômades, conduziu a períodos de colapso no comércio e ao abandono dos sistemas de irrigação. Da mesma forma, as tendências centrípetas entre as cidades estados sempre significou que a autoridade central sobre toda a região, quando imposta, tendia a ser efêmera e o localismo fragmentava o poder em unidades regionais tribais ou ainda menores, tendências que persistem até hoje no Iraque.

IV.2 - HISTÓRIA

A pré-história do Antigo Oriente Próximo[1]  inicia no período do Baixo Paleolítico, mas a escrita iniciou com a pictografia no período Uruk IV (quarto milênio AC) e o registro documentado de eventos históricos reais – e a história antiga da Mesopotâmia inferior – começou no meio do terceiro milênio AC, com registros cuneiformes dos primeiros reis dinásticos, terminando ou com a chegada do Império Aquemênida[2]  no final do século VI AC, ou com a conquista árabe islâmica da Mesopotâmia e o estabelecimento do Califado ao final do século VII DC, a partir da qual a região passou a ser conhecida como Iraque. Durante este período a Mesopotâmia abrigou alguns dos mais altamente desenvolvidos e socialmente complexos estados do mundo. A região foi uma das quatro civilizações ribeirinhas onde a escrita foi inventada, junto com o vale do Nilo, no Egito, o Vale do Indo, no subcontinente indiano, e o vale do rio Amarelo, na China. A Mesopotâmia abrigou cidades historicamente importantes (Figura 3), tais como Uruk, Nippur, Níneve, Assur e Babilônia, bem como grandes estados territoriais, como a cidade de Eridu, o reino Akkadiano, a Terceira Dinastia de Ur e os vários impérios assírios.
Figura 3
Alguns dos importantes líderes da Mesopotâmia foram Ur-Nammu (rei de Ur), Sargão (que estabeleceu o império Akkadiano), Hammurabi (que estabeleceu o estado da Velha Babilônia), Ashur-Uballit II e Tiglath-Pileser I (que estabeleceram os impérios Assírios).



CRONOLOGIA (essa cronologia ficará bem clara quando chegarmos aos impérios da Mesopotâmia)

Pré e proto-história[3]
•             Neolítico A Pré-Cerâmico (10.000–8.700 AC)
•             Neolítico B Pré-Cerâmico (8.700–6.800 AC)
•            Culturas Hassuna (~6.000 AC–? AC), Samarra (~5.700 AC–4.900 AC) e Halaf (~6.000 AC–5.300 AC)
•            Período Ubaid (~5.900–4.400 AC)
     Período Uruk (~4.400–3.100 AC)
     Período Jemdet Nasr (~3.100–2.900 AC)
Início da Idade do Bronze
     Início do período Dinástico[4] (~2.900–2.350 AC)
     Império Akkadiano (~2.350–2.100 AC)
     Período Ur III (.2112–2.004 AC)
     Início do Reino Assírio (Séculos XXIV a XVIII AC)
Idade do Bronze Médio
     Babilônia Inicial (Séculos XIX a XVIII AC)
    Colapso da Primeira Dinastia Babilônica (Séculos XVIII a XVII AC): erupção Minóica[5].
    Erupção Minóica(cerca de 1.620 AC)
Final da Idade do Bronze
    Período Médio Assírio (Séculos XVI a XI AC)
    Império Assírio (cerca de 1.365 AC a 1.076 AC)
    Colapso da Dinastia Kassita na Babilônia (cerca de 1.595 AC a 1.155 AC)
    Colapso da Idade do Bronze (Séculos XII a XI AC)
Idade do Ferro 
    Estados regionais Novo-Hitita ou Siro-Hitita (Séculos XI a VII AC)
    Império Novo-Assírio (Séculos X a VII AC)
    Império Novo-Babilônio (Séculos VII a VI AC)
•      Antiguidade Clássica
    Babilônia Persa, Assíria Aquemênida (Séculos VI a IV AC)
    Mesopotâmia Selêucida (Séculos IV a III AC)
    Babilônia Antiga Pérsia (Séculos III A.C a III DC)
    Osroene (Séculos II AC a III DC)
    Adiabene (Séculos I a II DC)
    Hatra (Séculos I a II DC)
    Mesopotâmia Romana, Assíria Romana (Século II DC)
Final da Antiguidade
    Mesopotâmia Persa, Assíria Persa (Séculos III a VII DC)
    Conquista Árabe Muçulmana da Mesopotâmia (a partir do meio do Século VII DC)

IV.3 - LINGUA E ESCRITA

A primeira língua escrita na Mesopotâmia, foi sumeriana, embora dialetos semíticos[6]  também fossem falados originalmente. Subartuan, a linguagem dos Zagros, talvez relacionada à família de linguagem hurro-urartuana, aparece em nomes de pessoas, rios e montanhas e em vários ofícios. O akkadiano tornou-se a língua dominante durante os Impérios Akkadiano e Assírio, mas o sumeriano foi preservado para finalidades administrativas, religiosas, literárias e científicas. O aramaico, que já havia sido comum na Mesopotâmia, tornou-se então a língua da administração provincial do primeiro Império Novo Assírio e então do Império Aquemênida Persa. O akkadiano caiu em desuso, mas ele e o sumeriano ainda foram usados em templos durante alguns séculos. Os últimos textos akkadianos datam do final do século I DC.
No início da história da Mesopotâmia (pelo milênio IV AC), a escrita cuneiforme foi inventada para a língua suméria. Literalmente, “cuneiforme” significa em forma de cunha, devido à ponta triangular do buril usado para imprimir sinais na argila úmida. A forma padronizada de cada sinal cuneiforme parece ter sido desenvolvida de pictogramas. Os primeiros textos (sete placas arcaicas) vêm do templo E (palavra ou símbolo sumério para casa ou templo), dedicado à deusa Inanna (deusa do amor, fertilidade e da guerra), em Uruk (cidade da Mesopotâmia), de um prédio designado por Templo C por seus descobridores.
O primeiro sistema logográfico[7]  de escrita cuneiforme levou vários anos para dominar. Assim, somente um número limitado de indivíduos foi contratado como escribas para serem treinados no seu uso. Apenas após a disseminação da escrita silábica ter sido adotada, sob o governo de Sargão, porções significativas da população da Mesopotâmia se tornaram literatas. Arquivos maciços de textos foram recuperados dos contextos arqueológicos das escolas escribas da antiga Babilônia, pelas quais a arte da escrita foi disseminada.
Bibliotecas e templos do império babilônico proliferavam nas cidades; mulheres, como os homens, aprendiam a ler e escrever e para os babilônios semitas, isso envolvia o conhecimento da extinta linguagem suméria, além de um complicado e extensivo silabário. Um velho provérbio sumério afirmava que “aquele que quiser sobressair na escola dos escribas, deve levantar com a madrugada”.
Uma quantidade considerável de literatura babilônica foi traduzida de originais sumérios e a língua da religião e da lei, por muito tempo continuou a ser a velha linguagem da Suméria. Vocabulários, gramáticas e traduções foram compilados para o uso dos estudantes, bem como comentários sobre os textos antigos e explicações de palavras e frases obscuras. Os caracteres do silabário foram arranjados e nomeados e listas foram redigidas.
Muitos trabalhos literários babilônicos ainda são estudados hoje. Um dos mais famosos deles é o “Épico de Gilgamesh”, em doze volumes, traduzido do original sumério por Sin-liqe-unninni. Cada divisão contém a história de uma única aventura na carreira de Gilgamesh (de quem ainda falaremos). A história completa é um produto composto, embora provável que algumas das histórias sejam artificialmente conectadas à figura central.

IV.4 - RELIGIÃO E FILOSOFIA

A religião da Mesopotâmia foi a primeira a ser registrada. Os mesopotâmios acreditavam que a Terra era um disco plano, circundado por um imenso espaço vazio, com o céu acima. Acreditavam também que a água encontrava-se em todos os lugares e que o universo havia nascido desse enorme mar. Sua religião era politeísta e embora a crença geral, havia variações regionais. A palavra suméria para universo é an-ki, que se refere ao deus Na e à deusa Ki. Seu filho era Enlil, o deus do ar que acreditavam ser o deus mais poderoso, chefe do Panteon, equivalente aos posteriores Zeus grego e Júpiter romano. Os sumérios colocaram questões filosóficas, como: “Quem somos?”, “Como chegamos aqui?”. E deram respostas a essas questões como explicações fornecidas por seus deuses.
As origens da filosofia podem ser rastreadas à sabedoria da Mesopotâmia primitiva, que incorporava certas filosofias de vida, particularmente ética, nas formas de dialética, diálogos, poesia épica, folclore, hinos, letras, prosa e provérbios. O raciocínio e racionalidade babilônicos avançaram além da observação empírica. As primeiras formas de lógica foram desenvolvidas pelos babilônios, cujo pensamento era axiomático e comparável à “lógica ordinária” descrita por John Maynard Keynes. Tal lógica foi empregada, em alguma medida, à astronomia e à medicina babilônica.
O pensamento babilônico teve uma considerável influência na filosofia inicial grega e helenística, mormente no pensamento dos sofistas e na dialética e diálogos de Platão, bem como um precursor aos métodos de Sócrates; o filósofo jônico Tales, de Mileto, foi influenciado pelas ideias cosmológicas babilônicas.


[1] O termo “Antigo Oriente Próximo” usa uma distinção do século XIX entre “Oriente Próximo” e “Extremo Oriente” como regiões globais de interesse do Império Britânico, iniciada durante a Guerra da Crimeia. A última partição importante do oriente entre esses dois termos era corrente em diplomacia ao final do século XIX com os Massacres Hamidianos dos Armênios e Assírios pelo Império Otomano em 1894 – 1896 e a Guerra Sino-Japonesa de 1894-1895. Esses dois teatros de guerra eram descritos pelos estadistas e conselheiros do Império Britânico como “o Oriente Próximo” e o “Extremo Oriente”. Logo eles passaram a repartir o palco com o “Oriente Médio”, que prevaleceu no século XX e prossegue nos tempos modernos.

[2] Também chamado “Primeiro Império Persa, foi um império centrado na Ásia Ocidental, Irã, fundado no século VI AC, por Ciro, o Grande. O nome vem do rei Aquemenes, que governou a Pérsia entre 705 e 675 AC. Falaremos dele quando chegarmos ao final do Império Babilônico.
[3] A “Pré História” designa o período anterior à história escrita. A Proto-História refere-se ao period entre a pré-história e a história, durante o qual uma cultura ou civilização ainda não desenvolveu a escrita, mas outras culturas já havias notado a sua existência em seus próprios registros. Por exemplo, na Europa, as tribos Celtas e Germânicas podem ser consideradas terem sido proto-históricas quando começaram a aparecer nos textos gregos e romanos. Proto-histórico pode também se referir ao período de transição entre o advento da literatura numa sociedade e os escritos dos primeiros historiadores. Sítios coloniais envolvendo um grupo literato e outro iliterato, são também estudados como situações proto-históricas.
[4] A Dinastia implica numa sequência de governantes da mesma família, raça ou grupo, de que tivemos exemplos e ainda temos em algumas partes do mundo. Nesse caso, um período dinástico, significa dizer que, naquele período, começou a imperar uma dinastia. O governo de uma tal sequência chama-se também uma dinastia, da mesma forma, que uma série de membros de uma família que se distingue por seu sucesso, poder, riqueza etc ....
[5] A Erupção Minoica, também conhecida como erupção de Thera ou de Santorini, foi uma catastrófica erupção vulcânica que atingiu a escala 6 ou 7 da escala “Indicador de Explosão Vulcânica (IEV)”, ocorrida no meio do segundo milênio AC Um dos maiores eventos vulcânicos de que se tem registro, devastou a ilha de Thera (também chamada de Santorini), localizada no arquipélago grego entre Grécia e Turquia, e incluiu o assentamento minoico de Akrotiri, bem como as comunidades e áreas agrícolas das ilhas próximas e a costa de Creta. A civilização minoica foi uma civilização da idade do Bronze, no mar Egeu, que surgiu na ilha de Creta, florescendo de 2.700 a 1.450 AC; foi redescoberta no início do século XX
[6] Um Semita é um membro de qualquer dos vários povos antigos e modernos de língua semita, originários do Oriente Médio, incluídos os Akkadianos (Assírios/Siríacos e Babilônios), Amonitas, Amoritas, Arameus, Caldeus, Canaanitas (incluindo Hebreus/Israelitas/Judeus e Fenícios/Cartagineses), Eblaitas, Dilmunitas, Edomitas, Semitas Etiópios, Hicsos, Árabes, Nabateanos, Malteses, Mandeanos, Malamitas, Moabitas, Sabanitas e Ugaritas. A palavra “semítico” é derivada de “Sem”, um dos três filhos de Noé, da Gênesis. O conceito de povo “semítico” é derivado dos relatos bíblicos das origens das culturas conhecidas aos antigos hebreus. Em um esforço para categorizar os povos conhecidos deles, aqueles que lhes eram mais próximos em cultura e língua, foram geralmente considerados como descendentes de seu antepassado Sem.
[7] Um logograma é um grafema (a menor unidade semanticamente distinguível numa linguagem escrita, da mesma forma que um fonema na linguagem falada) que representa uma palavra ou morfema (a menor unidade com significado em uma língua). Logogramas são também conhecidos como “ideogramas”, embora os últimos representem mais ideias diretamente que palavras e morfemas. Sistemas logográficos, ou logografias, incluem os primeiros sistemas reais de escrita.


Continua com a PARTE 4.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

AS TRÊS PRIMEIRAS GRANDES CIVILIZAÇÕES MUNDIAIS: MESOPOTÂMIA (PARTE 02)

III - AS CIVILIZAÇÕES PRIMITIVAS – PANORAMA GERAL

Will Durant, ao final do Capítulo VI do seu primeiro livro (de um total de onze), diz que aquele capítulo “de questões irrespondíveis, deveria terminar com a indagação ‘Onde a Civilização começou?’ – que é também uma questão irrespondível.” E acrescenta que se pudéssemos confiar nos geólogos e arqueólogos, as regiões da Ásia Central teriam sido uma vez úmidas e temperadas, alimentadas por grandes lagos e abundantes rios. A recessão da última era glacial teria secado essa área até que a chuva mostrou-se insuficiente para suportar cidades e estados, que foram abandonados pelos habitantes em busca do oeste, este, norte e sul em busca da água para sua sobrevivência. Muitos acreditam que essas regiões agora moribundas, viram o primeiro desenvolvimento substancial daquele vago conceito que constitui o que chamamos de civilização. Com o passar dos anos e com as descobertas que eles trazem, torna-se cada vez mais provável afirmar que foi o rico delta dos rios da Mesopotâmia que viu as primeiras cenas conhecidas do histórico drama da civilização.
Figura 1 - O Nilo no Egito, Tigre e Eufrates no Iraque, Indo no
Paquistão
As primeiras civilizações surgiram no mundo ao final do quarto e durante o terceiro milênio AC, em algumas áreas da Ásia e no norte da África. Os três grandes sistemas aluviais do Tigre-Eufrates, Nilo e Indo suportaram três grandes civilizações antigas (Fig. 1). Outras comunidades urbanas também surgiram durante esta época. Por exemplo, colinas de povoamentos conhecidos como tells ou tepes[1], ocorreram na maioria dos maiores vales entre o Iraque e o Paquistão, numa direção, e entre o Mar Cáspio e o Oceano Índico, na outra direção (Fig. 2). Contudo, diferentemente das grandes civilizações do Egito, Mesopotâmia e Indo, essas unidades não formaram um sistema econômico unificado e, embora claramente capazes de suportar, por algum tempo, sociedades grandes, ricas e organizadas, eram muito mais fracas do que as vastas civilizações das baixas terras aluviais.
Figura 2 - Localização geral das Civilizações menores
Das três mencionadas, a civilização da Mesopotâmia (primeiro a Sumeriana e, posteriormente, a Assíria e a Babilônica[2] ), foi a primeira na origem e, em muitos sentidos, a melhor entendida, acessível pela arqueologia e por documentos escritos. A cultura Mesopotâmica, embora separada de nós por mais de 4.000 anos, ainda permite enxergar a herança da antiga Suméria em muitas tradições atuais, transmitida através da passagem aos babilônios e assírios e, então, pelo empréstimo aos hititas[3] , fenícios[4]  e, finalmente, aos gregos. Traços específicos que nos conduzem de volta à Suméria incluem, no campo da matemática, a posição numérica, onde o valor de um número é determinado por sua posição numa sequência de algarismos (como no sistema decimal) e o sistema sexagesimal, pelo qual se divide o horário e o círculo; no mundo da religião, o conceito da força criativa da palavra divina e a história do Dilúvio Universal.
A arqueologia finalmente estabeleceu que a civilização surgiu inicialmente ao sul da Mesopotâmia, antes de em qualquer outro local. Conglomerados populacionais urbanos, arquitetura importante e escrita já existiam cerca de 3500 AC, embora só fossem aparecer no Egito séculos após. No vale do Indo, mesmo a fase pré–Harappana ou Harappana[5]  inicial, com suas pequenas cidades fortificadas, não começou antes de 3000 AC e a escrita não era conhecida antes da fase Harappana madura, que não pode ser datada antes de 2500 AC É mesmo possível que as duas civilizações, a Egípcia e a Indo, bem como as civilizações posteriores da Ásia Ocidental, tenham derivado da Suméria. Aqui devemos considerar a evidência a favor do ponto de vista de que a civilização difundiu-se deste centro e compara-la com a evidência para o desenvolvimento da civilização em áreas independentes. Inicialmente trataremos das civilizações egípcia e Vale do Indo e, posteriormente, com os centros menores de vida urbana na Ásia ocidental.
Inicialmente, é preciso deixar bem claro não haver dúvidas: o estabelecimento das civilizações Egípcia e Indo não foi efetivada por colonizadores da Suméria. Não há semelhanças próximas de cultura de qualquer espécie; de fato, é difícil enfatizar suficientemente as diferenças entre essas civilizações. As similaridades existentes são a nível conceitual: a prática da agricultura irrigada, a existência de cidades, de arte e arquitetura monumentais, a escrita, o uso do tijolo de lama e assim por diante. A natureza real dos trabalhos de irrigação, a forma das cidades e seus prédios e a natureza da linguagem escrita são completamente diferentes nas três áreas.
Na Suméria havia 15 a 20 grandes cidades, cada uma delas cercada por cidades menores, vilas e povoados. No Indo, ao contrário, havia duas enormes metrópoles e uma grande quantidade de assentamentos menores, sem cidades de porte médio entre elas. No Egito nada se sabe de quaisquer cidades do período inicial, mas o padrão posterior mostrava umas poucas cidades maiores e assentamentos de pequeno e médio porte entre elas, arranjados segundo um padrão linear imposto pela natureza, ao longo do vale do rio Nilo, em contraste com o padrão surgido no sistema fluvial duplo da Mesopotâmia ou o sistema fluvial múltiplo em Indo. As cidades em si eram também muito diferentes: a rígida disposição quase militar das cidades de Indo, nos seus planos bem definidos, contrasta fortemente com o tipo das cidades da Mesopotâmia, com suas vielas tortuosas e o aspecto de terem crescido de acordo com as circunstâncias, sem os benefícios de um plano urbano preconcebido.
Os sistemas de escrita também provêm um excelente exemplo: a escrita mais antiga nas três áreas era basicamente pictográfica[6] , mas os símbolos utilizados para representar um objeto particular eram completamente diferentes. Os estilos artísticos das três civilizações são também totalmente diversos. Na verdade, é muito difícil encontrar qualquer similaridade entre eles, exceto ao nível geral como dito acima. Além disso, há muito pouca evidência direta de contato entre as três civilizações, ou, para ser preciso, entre a Mesopotâmia e qualquer das duas outras, já que não existe qualquer tipo de evidência do contato entre Egito e o Indo. No Egito há evidências de contato com a Mesopotâmia, no período imediatamente anterior à Primeira Dinastia (iniciada cerca de 3100 AC). Os únicos objetos relevantes identificados são três lacres cilíndricos do final do período Uruk ou Protoliterato[7] . Após esse tempo, os próprios egípcios usavam os lacres cilíndricos (mas como amuletos, pois não tinha utilidade como lacres, já que não usavam argila para escrever), gravados com desenhos locais; seu uso é normalmente atribuído à influência mesopotâmica.
A situação no vale do Indo é diferente. Há evidência de contato entre a área do Indo e a Mesopotâmia durante o último período da civilização Harappana (2500-1900 AC), que corresponde ao final dos períodos sumerianos de Início da Dinastia Sargônida, Terceira Dinastia de Ur[8]  e Larsa[9] . Contudo, este contato toma a forma, principalmente, das manufaturas Indo na Mesopotâmia: há apenas alguns poucos objetos dela na área Indo e leves vestígios da influência mesopotâmica em motivos artísticos e na aparência de poucos lacres cilíndricos.
O que isso retrata é a evidência de três processos fundamentalmente independentes de desenvolvimento de civilização nos vales aluviais do Nilo, Tigre-Eufrates e sistema do Indo. Houve contato entre a Mesopotâmia e as duas outras áreas, mas apenas com influência periférica, que afetou algum aspecto do estilo das civilizações em desenvolvimento.
No passado, muitos estudiosos sentiram que a invenção da escrita tinha tão especial natureza que devia ter sido inventada apenas uma (na Suméria, uma vez que lá apareceu primeiro) e então se espalhado para outras áreas. Contudo, as escritas egípcia e indo são totalmente diferentes da escrita da Mesopotâmia, não apenas da desenvolvida cuneiforme, mas também da pictográfica anterior.
O homem do Paleolítico superior que riscava símbolos abstratos em pedaços de ossos, teve a ‘ideia de escrever’, como fez seu sucessor do Mesolítico que pintava sinais em seixos. O que lhes faltou foi alguma espécie de necessidade social para um sistema organizado de escrita. Esta surgiu somente com o desenvolvimento de complexas organizações econômicas e sociais, parte da Revolução Urbana. Quando a necessidade surgiu, as populações suméria, egípcia e indo, individualmente, inventaram a escrita para resolver o problema. As figuras e sinais abstratos que usavam costumeiramente com objetivos decorativos foram assumidos, recebendo significados convencionais padronizados e uma escrita primitiva nasceu. Somente na Mesopotâmia a escrita em sua forma primitiva original é encontrada, mas isso é, provavelmente, um acidente de sobrevivência arqueológica, surgindo dos diferentes materiais de escrita utilizados nas três civilizações. Contudo, futuras escavações adicionais podem vir a encontrar evidências mostrando antigos exemplos de escritas egípcia e indo no processo de formação.
Assim, para todas as finalidades e planos, as civilizações egípcia e indo se desenvolveram independentemente da Mesopotâmia. Entretanto, as cidades do Golfo Pérsico, alto vale do Irã, Afeganistão e Turquemenistão são diferentes. Essas cidades surgiram, nas primeiras três áreas, como um resultado da demanda, surgida nas grandes civilizações dos vales, por materiais naturais disponíveis nessas áreas costeiras e de terras altas. Assim vistas, as cidades dessas áreas eram secundárias, mas não devem ser vistas como simples derivativas da civilização suméria ou indo. Nesse sentido, há dois pontos a serem enfatizados. O primeiro é que nenhuma dessas cidades foi colônia da Mesopotâmia ou do Vale do Indo (em contraste com a colônia assíria em Kultepe, Anatólia[10] , no segundo milênio AC), mas apenas se aproveitaram da oportunidade de enriquecer pelas demandas das grandes civilizações. O segundo ponto é que essas comunidades haviam atingido um nível considerável de desenvolvimento social e econômico (embora sem a plena civilização) antes de se tornarem grandes cidades através da participação comercial com a Mesopotâmia e o Indo. A evidência arqueológica indica que materiais naturais demandados na Mesopotâmia e no Vale do Indo, haviam sido descobertos e explorados (embora em escala pequena quando comparada ao desenvolvimento posterior) pelas comunidades locais antes do final do quarto milênio AC, quando a demanda da Mesopotâmia tornou-se realmente forte. Assim, o surgimento de cidades no golfo Pérsico e alto Irã e Afeganistão foi devido, em parte, ao desenvolvimento local, que teve um estímulo adicional pelo crescimento do comércio de materiais naturais necessários às grandes civilizações. Contudo, essa explicação não se aplica ao desenvolvimento de cidades do Turkemenistão. Parece mais provável que nessa área houvesse outro centro independente de desenvolvimento de vida urbana, embora aqui o desenvolvimento nunca tenha alcançado o nível atingido na Mesopotâmia, Egito ou Vale do Indo.
Cidades em outros locais da Ásia oriental, que surgiram bem mais tarde, no segundo milênio AC, foram obviamente baseadas nas da Mesopotâmia. As cidades hititas da Anatólia, por exemplo, ou as cidades da costa Levantina (costa leste do Mediterrâneo, desde a Turquia até o Egito) como Ugarit e Byblos, embora com um carácter marcadamente local, mostra vários traços de influência mesopotâmica. Por exemplo, a escrita cuneiforme Akkadiana[11]  era usada nas duas áreas (bem como as escritas locais) e os estilos de arte em ambas evidenciam várias caraterísticas mesopotâmicas; no Levante, a influência egípcia também é parente. E no Irã oriental, a civilização Elamita[12] , que se desenvolveu a partir das cidades Proto-Elamita, tornou-se mais mesopotâmica em caráter com o passar do tempo, finalmente adotando a escrita cuneiforme em lugar da pictográfica original Proto-Elamita, embora usando-a ainda como linguagem local. Estas últimas civilizações da Ásia ocidental, conscientemente adotaram muitas práticas e ideias mesopotâmicas, especialmente as hititas e fenícias, e através delas, estas foram transmitidas à cultura atual.


[1] Um tell ou tepe é um tipo de empilhamento arqueológico artificial de pedras ou terra criado por ocupação e abandono humano de um local geográfico por vários séculos. Um tell clássico assemelha-se a um tronco de cone baixo, uma colina criada por muitas gerações vivendo e reconstruindo sobre o mesmo local; com o tempo a altura cresce formando o empilhamento arqueológico. O maior contribuinte isolado à massa do tell são os tijolos de argila, que se desintegram rapidamente.
[2] Pedimos um pouco de paciência aos nossos leitores, pois todos esses nomes serão vistos com todo o detalhe, oportunamente.
[3] Os Hititas foram um povo da Anatólia que estabeleceram um império em Hattusa (norte-centro da Anatólia), cerca de 1600 AC. Tal império alcançou o seu auge em meados do século 14 AC, sob Suppiluliuma I, abrangendo uma área que incluía a maior parte da Ásia Menor bem como partes do Levante norte e da Mesopotâmia superior. Após 1180 AC o império chegou a um fio com o colapso da Idade do Bronze, fragmentando-se em várias cidades-estados independentes, algumas das quais sobreviveram até o século VIII AC.
[4] A Fenícia foi uma civilização da antiguidade cujo epicentro se localizava no norte da antiga Canaã, ao longo das regiões litorâneas dos atuais Líbano, Síria e norte de Israel. A civilização fenícia foi uma cultura comercial marítima empreendedora que se espalhou por todo o mar Mediterrâneo durante o período de 1500 a 300 AC.
[5] Harappa é um sítio arqueológico em Punjab, Paquistão oriental, cerca de 24 km a oeste de Sahiwal. A atual vila de Harappa fica a 6 km do antigo sítio. Por convenção arqueológica para denominação de uma civilização anteriormente desconhecida, pelo sítio escavado, a Civilização do Vale do Indo é também chamada de Civilização Harappana.
[6] A Pictografia é a forma de escrita pela qual ideias e objetivos são transmitidos através de desenhos. Suas origens na antiguidade são a escrita cuneiforme e dos hieróglifos.
[7] O período Uruk (cerca de 4000 a 3100 AC) ocorreu na história da Mesopotâmia seguindo o período Ubaid e seguido pelo período Jemdet Nasr, sendo também chamado de Período Protoliterato. Sua denominação vem da cidade sumeriana de Uruk. Foi durante esse período que a pintura cerâmica declinou, à medida que o cobre tornava-se popular, junto com os lacres cilíndricos.
[8] Ur foi uma importante cidade-estado suméria da Mesopotâmia antiga, localizada ao sul do atual Iraque, outrora uma cidade costeira próximo da foz do rio Eufrates, no Golfo Pérsico, e agora interior por força do seu recuo, a 16 km de Nasiriyah. A cidade data de cerca de 3800 AC e na história escrita aparece registrada como cidade-estado desde o século XXVI AC, tendo como seu primeiro rei registrado Mesh-Ane-pada. Considerada por muitos como a cidade de nascimento do patriarca hebreu Abraão.
[9] A cidade de Larsa tornou-se uma força política durante o período Isin-Larsa, após o colapso da Dinastia Ur-III, cerca de 1940 AC. Ishbi-Erra, um oficial de Ibbi-Sin, último rei da Dinastia Ur-III, mudou-se para Isin como sucessor daquela dinastia e de lá tomou Ur e as cidades de Uruk e Lagash, à qual se submetia Larsa. Acabou rompendo com Isin, estabelecendo uma dinastia independente em Larsa.
[10] Anatólia, ou península anatoliana, também conhecida como Ásia Menor, denota a protrusão ocidental da Ásia, que compõe a maior parte da República da Turquia. A região é banhada pelo mar Negro, ao norte, o mar Mediterrâneo, ao sul e o mar Egeu, a oeste. O mar de Mármara forma uma ligação entre os mares Negro e Egeu, através dos estreitos de Bósforo e Dardanelos, separando a Anatólia da Trácia, no continente europeu.
[11] O Império Akkadio (também chamado Império Akkadiano ou Império da Akkad) foi um Estado mesopotâmico semita do milênio III AC, centrado na região da Acádia e com capital na cidade homônima. Surgiu em 2.334 AC como resultado das inúmeras campanhas militares de Sargão e compreendeu uma área que ia da Síria até a Baixa Mesopotâmia. Existiu por dois séculos, desintegrando-se durante o reinado de Shu-Turul devido a inúmeras revoltas internas e a pressão de tribos nômades como os gútios.
[12] Elam ou Elão, por vezes referida como Susiana, foi uma civilização da antiguidade localizada no território que corresponde ao atual sudoeste do Irã, estendendo-se desde as terras baixas do Cuzestão à província de Ilam, bem como uma pequena parte do sul do Iraque.

Na próxima postagem, PARTE 3.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

AS TRÊS PRIMEIRAS GRANDES CIVILIZAÇÕES MUNDIAIS: MESOPOTÂMIA (PARTE 01)

I - INTRODUÇÃO

Custei, mas aprendi, por conta mesmo de muitas das postagens aqui colocadas, sobre a necessidade do conhecimento das civilizações que, segundo os grandes mestres da História, são consideradas como as primeiras da humanidade, aquelas a partir das quais todas as demais se desenvolveram ou profundamente sofreram a sua influência. Tais civilizações foram responsáveis por toda a sequência de acontecimentos mundiais que as sucederam e, por isso mesmo, são frequentemente citadas em todas as informações disponíveis. Por essa razão, frequentemente somos obrigados a realizar alguma incursão sobre uma ou mais delas, para que os nossos leitores – os que ainda não conhecem o assunto – fiquem também a par dessas informações.
Lembro aos leitores que, neste artigo, estaremos falando sobre as primeiras civilizações e não sobre os primeiros homens ou humanoides sobre a terra - questão ainda bem mais complexa de resolver, dados os vários aspectos religiosos e científicos envolvidos -, provavelmente surgidos na África, cerca de 250.000 AC. Todos possuímos alguma ideia sobre o significado da palavra “civilização”, um conceito relacionado a uma sociedade complexa e avançada, como a atual sobre a Terra, mas também a culturas antigas que floresceram há milênios atrás, nos deixando um fantástico legado. Will Durant, em sua “História da Civilização”, define tal conceito como: “Ordem Social na promoção da criação de cultura”; e junta os quatro elementos que constituem uma civilização: “disposição econômica, organização política, tradições morais e a busca do conhecimento e das artes”. Acrescenta um ponto importantíssimo ao dizer que “a civilização começa aonde o caos e a insegurança começam, pois quando o medo é dominado, a curiosidade e a construção são livres e o homem passa, pelo impulso natural em direção ao entendimento e ao embelezamento da vida”. Numa definição mais palpável, Xavier Bartlett, licenciado em História e Arqueologia pela Universidade de Barcelona, diz que “civilização, num amplo sentido, denota um conjunto de ideias, conhecimentos, valores, instituições e empreendimentos de uma sociedade em um dado instante”.
É nesse contexto que, tentando resolver a nossa situação, de uma vez por todas, decidimos tomar coragem, realizando a pesquisa e publicando a presente matéria, que tem como objetivo a descrição das três primeiras grandes civilizações da Terra: Mesopotâmia, Egito e Vale do Indo.
Lembro aos leitores, como reforço à importância do tema, a frequência com que certas cidades, personagens e fatos ocorridos nessas civilizações, são mencionados no livro mais importante do mundo, o Antigo Testamento da Bíblia. Certamente, de posse desses conhecimentos, poderemos entender bem melhor a leitura do Livro Sagrado.
Entretanto, antes de iniciar o desenvolvimento dos objetivos específicos a que nos propomos, vejo importante que façamos, pelo menos, uma introdução ao sistema arqueológica de idades, muito necessário ao perfeito entendimento do estudo das grandes civilizações primitivas, como segue.

II - SISTEMA ARQUEOLÓGICO DAS TRÊS IDADES

O sistema das três idades, em arqueologia e antropologia física, é a classificação da pré-história[1] humana em três períodos de tempo consecutivos, designados por suas respectivas tecnologias de confecções de ferramentas:

Idade da Pedra (grosseiramente 3,4 milhões de anos atrás, até 6.000 a 2.000 AC)
Idade do Bronze (3.300 A.C – 1.200 A.C)
Idade do Ferro (1.200 AC – 200 D.C)

É temerário - e de pouco valor cronológico - querer definir com precisão inícios e finais das várias eras, pois está mais do que provado que elas não iniciaram ou acabaram simultaneamente em todo o mundo As datas e contextos variam muito, dependendo da região e tal sequência de eras não é necessariamente verdadeira para cada parte da superfície terrestre. Há áreas, como ilhas do Pacífico Sul, interior da África e partes da América do Norte e do Sul, onde os povos passaram diretamente do uso da pedra para o uso do ferro sem uma era intermediária do bronze. Muito próximo de nós, temos o caso do Brasil, que se encontrava, certamente, na Idade da Pedra quando os navegadores portugueses aqui chegaram, com todo o conhecimento da passagem da Idade Média para o Renascimento europeu, que incluía o uso das armas de fogo; nossos índios ficaram, portanto, muito longe de conhecerem toda a transição pelas várias eras.
O conceito da divisão das eras pré-históricas, em um sistema baseado nos metais, estende-se até a antiga história europeia, mas o presente sistema arqueológico das três eras principais – pedra, bronze e ferro – origina-se do arqueólogo dinamarquês Christian Jurgensen Thomsen (1788–1865), que colocou o sistema em bases mais científicas, por estudos tipológicos[2]  e cronológicos, inicialmente de ferramentas e outros artefatos presentes no Museu das Antiguidades do Norte, em Copenhague (mais tarde Museu Nacional da Dinamarca). Posteriormente ele utilizou artefatos e relatórios de escavação publicados ou a ele enviados por arqueólogos que faziam escavações controladas. Sua posição como curador do museu deu-lhe visibilidade suficiente para tornar-se altamente influente na arqueologia dinamarquesa.
A partir do exame dos artefatos do Museu e relatórios das modernas escavações, Thomsen mostrou que o material poderia ser classificado em tipos e que esses tipos variavam no tempo de forma a correlaciona-los com a predominância de implementos e armas de pedra, bronze e ferro. Desta forma, ele transformou o Sistema de Três Eras, de um esquema evolucionário, baseado na intuição e no conhecimento geral, em um sistema de cronologia relativa apoiado por evidência arqueológica. Tal como desenvolvido por Thomsen e seus contemporâneos na Escandinávia, esse sistema foi inicialmente enxertado na cronologia bíblica. Mas, durante os anos de 1830 eles alcançaram independência das cronologias textuais e confiaram principalmente na tipologia e estratigrafia[3].
Arranjando o material da coleção cronologicamente, Thomsen mapeou as espécies de materiais que ocorriam simultaneamente nos depósitos e quais não, pois que tais arranjos lhe permitiriam discernir tendências exclusivas a certos períodos. Desta forma ele descobriu que ferramentas de pedra não apareciam junto com ferramentas de bronze e ferro nos depósitos mais antigos e que ferramentas de bronze não foram encontradas com ferramentas de ferro, de forma que três períodos podiam ser definidos pelos três materiais disponíveis, pedra, bronze e ferro.
Essa análise, que enfatizava a ocorrência simultânea e a atenção sistemática ao contexto arqueológico, permitiu a Thomsen construir uma estrutura cronológica dos materiais da coleção e classificar novos achados em relação à cronologia estabelecida, mesmo sem muito conhecimento da sua origem. Desta forma, o sistema de Thomsen era realmente um sistema cronológico e não um sistema evolucionário ou tecnológico.
Por 1831 Thomsen estava tão certo da utilidade do seu método que fez circular um panfleto “Artefatos Escandinavos e sua Preservação”, aconselhando arqueólogos a observar o maior cuidado em anotar o contexto de cada artefato; tal panfleto teve efeito imediato. Resultados reportados a ele confirmaram a universalidade do Sistema das Três Eras. Thomsen já tinha uma reputação internacional quando, em 1836, a Real Sociedade de Antiquários do Norte publicou a sua contribuição ilustrada no “Guia da Arqueologia Escandinava” em que ele expunha a sua cronologia com comentários sobre tipologia e estratigrafia.
Thomsen foi o primeiro a perceber tipologias de objetos de túmulos, tipos de túmulos, métodos de enterro, motivos cerâmicos e decorativos, bem como designar esses tipos a camadas encontradas em escavações. Seus aconselhamentos pessoais e publicados, relativos a métodos de escavação, a arqueólogos dinamarqueses, produziram resultados que comprovaram, empiricamente, o seu sistema, colocando a Dinamarca na vanguarda da arqueologia europeia por uma geração, pelo menos.
Desde 1836 o seu sistema tem sido expandido por subdivisões de cada era e refinado por achados arqueológicos e antropológicos adicionais, além do concurso de outros arqueólogos e antropólogos que vieram após ele. As alterações mais importantes referem-se à subdivisão da Idade da Pedra em três períodos – Paleolítico, Mesolítico e Neolítico – e à subdivisão da Idade do Bronze em dois períodos – Idades do Cobre e do Bronze propriamente dita.


TABELA RESUMIDA DO SISTEMA DAS TRÊS ERAS 

Era
Período
Ferramentas
Economia
Locais de Moradia
Sociedade
Religião
Idade da Pedra
Paleolítico
Ferramentas e objetos manufaturados encontrados na natureza – porrete, clava, pedra afiada, cutelo, machado, lança, arpão, agulha.
Caça e coleta
Estilo de vida móvel - cavernas, cabanas, em geral a beira de rios ou lagos
Um grupo de coletores de plantas comestíveis e caçadores (25 a 100 pessoas)
Evidência de crença no após vida apenas no Paleolítico Superior, marcado pela aparência de rituais de enterro e adoração de ancestrais. Sacerdotes e servos de santuários aparecem na pré-história.
Mesolítico
Ferramentas empregadas em dispositivos compostos – arpões, arco e flecha. Outros dispositivos tais como cestas de pesca e barcos
Caça e coleta intensa, presa de animais selvagens e sementes de plantas selvagens para uso doméstico e cultivo
Vilas temporárias em locais oportunos para atividades econômicas
Tribos e bandos
Neolítico
Ferramentas de pedra polida, dispositivos úteis no cultivo de subsistência e defesa – formão, enxada, arado, canga, gancho de ceifa, tear, cerâmica e armas
Revolução Neolítica – domesticação de animais usados na agricultura e pastoreio, caça e pesca. Ferramentas de guerra.
Instalações permanentes variáveis em tamanho, de vilas a cidades muradas, obras públicas.
Tribos e formação de supremacias em algumas sociedades Neolíticas do final do período
Politeísmo presidido pela deusa mãe.
Idade do Bronze
Idade do Cobre
Ferramentas de cobre, roda de oleiro
Civilização incluindo ofício e comércio
Centros urbanos circundados por comunidades politicamente ligadas
Cidades-estados*
Deuses étnicos, religião do estado
Idade do Bronze
Ferramentas de bronze
Idade do Ferro
Ferramentas de ferro
Economia nacional presidida pelo governo
Cidades ligadas por estradas, capital de cidade
Países, impérios
Uma ou mais religiões sancionadas pelo estado
* A formação de estados se inicia durante o início da Idade do Bronze no Egito e Mesopotâmia; durante o final da Idade do Bronze são fundados os primeiros impérios.



[1] Pré-história (antes da história, ou antes do conhecimento adquirido pela investigação) é o período de tempo antes da que a história fosse registrada ou antes da invenção dos sistemas de escrita. Ela se refere ao período da existência humana antes da disponibilidade daqueles registros escritos com os quais começa a história registrada. Mais amplamente, pode se referir a todo o tempo entre o início da existência humana e a invenção da escrita.
[2] Na arqueologia, a tipologia é um método científico que estuda os diversos utensílios e outros objetos (cerâmicas, peças de metal, indústrias lítica e óssea, etc.) encontrados nas escavações, e que os agrupa e classifica segundo as suas características quantitativas (medidas) e qualitativas (morfologia, matéria-prima, técnicas de fabrico, etc.), com vista à sua repartição em classes definidas por tipos modelo.
[3] Estratigrafia é um ramo da geologia que estuda as camadas de rochas e a formação em camadas (estratificação). Ela é primariamente utilizada no estudo de rochas sedimentares e rochas vulcânicas em camadas. A estratigrafia inclui dois campos relacionados: estratigrafia litológica (lito estratigrafia) e estratigrafia biológica (bio estratigrafia).

Na próxima postagem, PARTE 2

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A ÚLTIMA PRAIA DA ILHA

Como muitos já devem saber, cheguei com a família, em Florianópolis, em dezembro de 1976, há quase 38 anos atrás. E, para não quebrar a regra, nunca tive a menor pressa em conhecer a Ilha da Magia, justamente por saber que, não estando como turista, teria a vida inteira para desbravar as suas belezas. E é bem aí que reside o engano do habitante, pois acaba por ir postergando muitos dos passeios e, quando se dá conta, passaram-se 38 anos e ele ainda não viu tudo o que havia para ver.
Pois bem, no dia passado 21 de agosto deste ano da Graça, fui conhecer a última das praias da ilha, que ninguém sabe ao certo dizer quantas são, visto que algumas delas são subdivididas em duas e até três quando, fisicamente, é fácil constatar que é somente uma e mesma praia. Sem querer aqui polemizar, encontrei uma lista da Wikipédia que relaciona as 43 (quarenta e três) praias do Município de Florianópolis. A praia a que me refiro é a Praia da Lagoinha e o título do meu texto nada tem a ver com a sua posição geográfica na ilha, nem com a sua importância como balneário, mas refere-se, tão somente, àquela que fui conhecer após ter conhecido todas as demais.

A Praia da Lagoinha é, realmente, a última da extremidade norte da Ilha, a 34 km do centro da cidade e tem apenas 800 metros de extensão, uma faixa de areia que varia com a maré, de 12 a 35 metros, com um mar ainda tranquilo – pois que se encontra numa baía bastante fechada protegida por costões - de águas muito claras, já quase faceando o “mar bravo”, como dizem os ilhéus. Localizada entre as Praias de Ponta das Canas, a oeste, e Praia Brava, a leste, abriga uma tradicional colônia de pescadores, mas tornou-se, com a chegada da “civilização”, quase que uma praia particular dos condomínios e casas luxuosas que inibem em muito o acesso ao mar. Na sua extremidade leste, um pequeno rio lança suas águas ao mar; periodicamente, sua foz é assoreada pelas areias do mar, bloqueando o seu escoamento e formando a pequena lagoa de água doce que dá nome à praia. A primeira foto, acima, emprestada do Google Maps, mostra a Ilha de Santa Catarina, com o Norte para a esquerda, onde pode-se ver a Praia da Lagoinha. Na segunda foto (abaixo), da mesma fonte, já com o norte orientado para cima, podemos ver a Praia da Lagoinha, entre as praias de Canasvieiras, Cachoeira do Bom Jesus e Ponta das Canas, a oeste, e Praia Brava e início da Praia dos Ingleses, a leste. A foto seguinte, mais abaixo, ainda da mesma fonte, ampliada, mostra a Praia da Lagoinha em detalhe, que permite ver alguns dos seus condomínios, as acessos e o pequeno rio que nela deságua, em sua extremidade leste.

O povoamento da Praia da Lagoinha teve início por colônias de pescadores, pois o mar, aberto para o norte, propicia a entrada das tainhas; como o mar apresenta ondas suaves, não é difícil para os barcos, quebrarem a arrebentação, tornando-a um ambiente bastante favorável à pesca. Algumas atividades agrícolas também integravam o modo de vida dos primeiros habitantes, tendo como exemplo o cultivo da mandioca, milho e café. Até hoje a área permanece como núcleo pesqueiro, embora a quantidade e qualidade dos frutos do mar tenha se reduzido drasticamente. Os poucos peixes e crustáceos retirados do mar vão direta e rapidamente transportados aos pouco restaurantes e hotéis dispostos à beira da praia, onde pratos típico, com ingredientes frescos, podem ser degustados à moda típica da cultura pesqueira açoriana, como a tainha frita, o peixe grelhado e o pirão.

Na oportunidade em que fomos conhecer a praia da Lagoinha, tiramos algumas fotos que aproveito para incluir nesta postagem. A primeira delas, abaixo, mostra uma montagem para reproduzir a extremidade leste, já com a “civilização” invadindo os costões. A foto seguinte, mais abaixo, mostra a extremidade oeste da Praia da Lagoinha.
No retorno para casa, testemunhamos e protagonizamos um evento “sui-generis”, que faço questão de incluir na postagem, por ser demais ilustrativo da evolução da fauna marítima da Ilha. Passando em frente a uma placa na beira da estrada, no caminho de Praia da Lagoinha para Ponta das Canas, que oferecia “Camarões Frescos e Vivos”, paramos para tentar comprar alguns camarões. O proprietário da casa, o Sr. Francisco, muito atencioso e gentil, nos conduziu para mostrar um enorme recipiente de isopor, repleto de camarões e gelo fundente. Os camarões eram enormes, e seu aspecto e a total ausência de aroma, dispensavam totalmente a pergunta sobre a qualidade dos camarões, mormente para quem viveu na ilha durante 38 anos.
 A curiosidade sobre o tamanho dos camarões, entretanto, me levou a perguntar ao Sr. Francisco, sobre a sua origem, ao que ele me respondeu, com uma inacreditável e simplista honestidade: do Rio Grande do Norte, Natal! Eu não podia acreditar no que estava escutando e coloquei mais algumas perguntas sobre os antigos camarões da Lagoa da Conceição, Barra da Lagoa e outros pontos conhecidos da Ilha, e mesmo de Laguna.
Não houve jeito de alterar a resposta do Sr. Francisco, que afirmou, categoricamente, não haver mais camarão da Ilha ou mesmo de Laguna, complementando que a Lagoa da Conceição ainda produzia uns poucos camarões, consumidos pelos restaurantes à sua volta e que os de Laguna mal eram suficientes para o abastecimento daquela região costeira do estado; porém, todos os demais vinham do Rio Grande do Norte. E eu, tristemente, retornei ao passado, para mim ainda tão vivo e recente de 1977, quando chegava a SC, em que um funcionário do extinto DNOS, onde eu exercia as minhas funções, saía à noite, armado de sua redinha (coca) e do liquinho (lampião a gás), em direção à Lagoa da Conceição, como “hobby”, para retornar algumas horas depois com cerca de dez quilos de maravilhosos camarões! Ou quando em nossas viagens a serviço, na região de Tubarão, Laguna e Imbituba, ao retornar fazíamos uma breve parada na Caputera, para comprar a baixos preços, quilos e mais quilos de pura carne de siri que eram apanhados no complexo lagunar de Mirim, Imaruí e Santo Antônio, naquela região. Quanta diferença faz a “civilização”, num curto espaço de menos de 40 anos! E imaginei a cena inusitada, de alguém observando, em Natal, no Rio Grande do Norte, o embarque dos famosos camarões em caminhões frigoríficos, a perguntar: “Para onde estão indo esses camarões?” E a resposta do encarregado: “Para Florianópolis, SC” E o primeiro, incrédulo: “Para Florianópolis? Para aquela ilha no sul do país, totalmente cercada por água do mar, a quase 6.000 km de distância?” Coisas desse nosso Brasil!
Para encerrar, um lindo entardecer na última praia da Ilha.